mundo se desabam em
lágrimas diante dessa despedida forçada, abrupta,
de uma morte que, independente da idade, é, seria e sempre
será prematura. Sem alternativa, somos obrigados a aceitar
a despedida de El Pibe de Oro, Diego Armando Maradona, e nos resignar
a sobrevida em um mundo cujo sentido se perde sem sua presença.
Pessoalmente, a notícia foi um baque para mim.
Ainda que o dia já raiasse o alto meio-dia, eu ainda dormia
quando fui acordado com essa terrível manchete. Estava embargado
pelo sono, mas o despertar foi instantâneo. Quem consegue
voltar a dormir perante uma tragédia de tal porte? Eu não,
certamente, e qualquer uma que tenha visto e acompanhado a vida
de Maradona, dentro e fora das quatro linhas, muito provavelmente.
Meu despertar para o mundo do futebol, quando ainda era uma criança
com oito anos de idade, parte da racionalização –
ou da paixão, embora sequer tivesse consciência disso
– ao assistir Maradona jogar pela seleção argentina,
para ser preciso, nos jogos preparatórios para a Copa do
Mundo de 1982. Maradona ainda era um jovem na época, uma
proeminente revelação do mundo da bola, mas já
reconhecido como gênio do esporte pelo povo argentino, um
injustiçado por ter ficado de fora da Copa 1978 quando a
seleção porteña ganhou seu primeiro mundial
jogando em casa. Foi graças a Maradona que aprendi a admirar
e idolatrar o futebol argentino além de qualquer rivalidade,
uma admiração que se mantém até hoje,
esse triste dia, e que jamais se apagará.
Na Copa de 1982, enfim Maradona teve a primeira grande
chance de desfilar sua categoria no palco maior do futebol, mas
o craque e sua seleção sucumbiram após duas
derrotas na 2ª fase diante da Itália – que sagrar-se-ia
campeã daquela Copa – e do escrete canarinho. Derrotado,
eliminado e expulso da partida diante do Brasil, dizia-se, em terras
tupiniquins, que Maradona não estaria à altura do
maior craque brasileiro da época, Zico. Porém, mais
quatro anos se passariam até ele provar que não só
era melhor que Zico, mas também que Pelé.
A Copa seguinte, disputada no México, foi a
grande redenção de Maradona, mas não seria
a única, nem a última. Quem o viu jogar nos gramados
mexicanos jamais esquecerá e não se cansa de rever;
quem não viu, urge ver, pois verá e comprovará
a arte de Maradona em seu auge. Da primeira a última partida
naquela Copa, foi o gênio de Maradona que permitiu a Argentina
triunfar, desde de o toque maestrino para deslocar o goleiro no
empate diante da Itália na partida de estreia, até
a enfiada precisa para Burruchaga marcar o gol do título
na final diante da Alemanha em um jogo que parecia ganho, mas tornou-se
dramático após a Argentina abrir dois gols de vantagem
e ceder o empate já na parte final do jogo. Porém,
foi na partida diante da Inglaterra pelas quartas-de-finais que
Maradona viria deixar de ser mais um craque para tornar-se um legítimo
Deus a figurar no mais alto panteão do futebol.
Foi no dia 22 de julho de 1986, no estádio
Azteca, Cidade do México, que Maradona surpreendeu o mundo
acima de qualquer capacidade que um jogador de futebol seria capaz
de fazê-lo. O contexto da partida era único, confrontava
duas seleções de países que haviam estado em
guerra poucos anos antes, a Guerra das Malvinas, que confrontou
Argentina e Inglaterra pela posse do arquipélago rico em
petróleo localizado no Atlântico Sul, próximo
da costa argentina. A Argentina seria retumbantemente derrotada
pelas forças bélicas britânicas. Com a derrota,
a cúpula militar do país viria abaixo e, apesar do
fracasso na tentativa de assumir o controle das Malvinas, a ditadura
militar que controlava a nação desde 1960 chegou ao
fim. Diante tudo isso, a partida contra a Inglaterra tinha aura
de revanche para o povo argentino, coube ao escrete porteño
buscar na grama mexicana a vitória que escapou nos mares
atlânticos. Nessa "guerra", Maradona foi o grande
general que comandaria o país ao triunfo – e em grande
estilo.
Foi um jogo duro, equilibrado e bem disputado, isto
é, ao menos até os seis minutos da segunda etapa quando,
em um balão flutuando na risca da pequena área, discretamente,
Maradona ergueu sua mão na altura da cabeça para,
por trás da cabeleira, com um leve toque tirar a bola das
mãos do goleiro Peter Shilton e colocar a Argentina a frente
do placar. Na comemoração, Maradona corre para a torcida
com um olhar maroto para o árbitro, os ingleses acusam o
toque de mão, mas o gol é validado. Nascia aí
o lance que ficou eternizado como "la mano de Dios", que,
se não premiou a genialidade, consagrou a malandragem do
astro argentino. Mas para qualquer um que o criticasse, bastariam
mais alguns minutos para Maradona provar sua classe privilegiada,
quando, aos 10, arrancou do campo de defesa deixando dois ingleses
para trás e avançou em velocidade, imparável,
passou por mais dois zagueiros e ganhou a área inglesa, a
sua frente, restava apenas o goleiro. A essa altura, ele já
tinha o gol a sua disposição, bastaria um toque cruzado
para deslocar Shilton e marcar, dois de seus companheiros estavam
na marca do pênalti, livres para apenas empurrar a bola para
o gol, mas com requintes de crueldade, Maradona limpou Shilton e,
antes que fosse derrubado ou bloqueado pelo zagueiro inglês
em uma desesperada tentativa de desarmá-lo por trás,
apenas tocou de bico para o gol vazio. Um golaço que posteriormente
seria aclamado como o mais belo gol da história das Copas.
Um gol que simplesmente apagou a malandragem do gol anterior pois,
conforme disseram os críticos, foi um gol que valeu por dois.
A Inglaterra ainda diminuiria o placar, que terminou em 2x1 para
a Argentina. Apesar do gol de mão ter sido fundamental para
consagrar a vitória dos porteños, perante o golaço
jamais visto marcado por Maradona, sequer os ingleses deixaram de
reconhecer a supremacia argentina naquela partida. A derrota nas
Malvinas estava vingada.
Maradona movimentando-se para driblar Shilton e marcar
o gol mais bonito
da história das Copas
O título argentino estava desenhado, não
havia mais como parar o craque argentino. A semifinal foi mais um
desfile de Maradona, com dois golaços, deixou a Bélgica
para trás para encarar a Alemanha na final. Na grande decisão
no lendário estádio Azteca, Maradona não brilhou
tanto como nas partidas anteriores, mas foi dele a assistência
para o gol de Burruchaga que selou a vitória e a conquista
argentina. A partir daí, não era apenas a sua mão,
mas seu corpo e alma que seriam dignificados como Deus.
Não a toa iniciamos essa matéria fazendo
menção a um "tango dramático", pois
essa é a trilha sonora que traduz os altos e baixos do craque
argentino a partir do auge de sua glória em terras mexicanas.
Na Copa seguinte, disputada na Itália, nem Maradona nem a
Argentina exibiram o mesmo futebol consagrado no México.
Ainda assim, com a liderança do gênio, o time avançou
até a final para encarar a Alemanha mais uma vez e só
não saiu campeã em função de um roubo
histórico proporcionado pelo árbitro, que não
marcou um pênalti legítimo para a Argentina e, no lance
seguinte já nos minutos finais da partida, anotou um pênalti
inexistente para a Alemanha. A campanha argentina na Copa de 1990
também abalou a carreira de Maradona como grande líder
do Napoli devido ao rancor do povo italiano em função
da eliminação da Azurra nas semifinais diante da Argentina
e a etusiástica comemoração do craque às
barbas da torcida local. Diante da pressão dos italianos,
especialmente dos nortistas, Maradona deixou o Napoli onde havia
consagrado-se campeão italiano nas temporadas de 1986-1987
e 1989-1990. Este seria o último título mais expressivo
conquistado por Maradona em campo.
A partir daí, Maradona passou a vivenciar
seus momentos mais dramáticos fora de campo quando o sucesso,
as baladas e a convivência com os amigos criaram o ambiente
que o levou ao vício em cocaína. Sua saída
do Napoli se deu em meio ao flagra e a suspensão por dopping
e,então, poucos acreditavam que pudesse voltar aos dias de
glória. Ledo engano, Maradona superou o vício, mesmo
que momentaneamente, para apresentar-se em ótima forma na
Copa de 1994 nos Estados Unidos, porém acabou suspenso por
dopping mais uma vez, desta feita por uso de uma substância
proibida que supostamente usou para recuperar a forma e emagrecer.
Após a suspensão de Maradona, a Argentina sentiu o
baque e acabou eliminada pela Romênia nas oitavas-de-finais.
Ainda assim, apesar de seu breve retorno – foram apenas dois
jogos disputados antes da suspensão por dopping
–, esse capítulo derradeiro de Maradona nas Copas foi
também sua última redenção após
os problemas que o haviam afastado dos gramados – pena que
durou pouco. A decepção na Copa de 1994 foi quase
um divisor de águas entre o Maradona craque e o Maradona
doente, vítima do alcoolismo e do vício em cocaína.
Em 2004, o craque chegou ao fundo do poço após
uma overdose que quase lhe tirou a vida. Maradona foi internado
em estado de coma e o povo argentino parou para rezar pelo reestabelecimento
de seu ídolo maior. Nesse momento, a redenção
de Maradona foi sua sobrevivência e, apesar de passar por
novos percalços, El Pibe superou o vício para retomar
a carreira de futebolista, desta feita como técnico. Embora
nunca tenho feito sucesso ou conquistado títulos como treinador,
foi convidado para comandar a Argentina para a disputa da Copa 2010
na África do Sul. A Argentina passou dificuldades para garantir
a vaga na Copa, chegou a sofrer um 6x1 da Bolívia e só
garantiu sua presença na última partida das eliminatórias
ao vencer o Uruguai em Montevideo. Na Copa, comandando o craque
Messi, a Argentina acabou eliminada após ser goleada pela
Alemanha nas quartas-de-finais por 4x0 – em uma época
em que perder de 4x0 para Alemanha era considerado muito.
Esse breve resumo não traduz o que Maradona
representa não só para o futebol, mas como personagem
mundial, sobretudo, como um ser humano que transcende o esporte.
No campo, foi um craque inigualável, na vida, embora polêmico,
foi um ídolo carismático e amado de forma incondicional,
uma perda que jamais será superada por aqueles que acompanharam
sua vida e carreira, que fará muita falta para o povo argentino
e todos os amantes do futebol.
Maradona, esteja em paz...
Melhor que Pelé
Há inúmeros fatores os quais poderíamos
dissertar a respeito para embasar o fato de que Maradona foi melhor
que Pelé, especialmente ao se analisar a vida pessoal de
ambos os craques incluindo suas posições políticas
e, até, algumas questões morais, embora nenhum deles
seja irretocável quanto a isso. Mas foi mesmo na bola que
Maradona provou-se melhor que Pelé.
Naturalmente, aqueles que defendem que Pelé
foi melhor que Maradona sempre apelam para os números para
atestar essa visão rasa, que baseia-se apenas em resultados
e totais de conquistas, nas quais, certamente o craque brasileiro
supera de longe o argentino. Pra começar, dizem que Pelé
marcou mais de 1000 gols enquanto Maradona marcou "apenas"
cerca de 400 gols. Porém, não dizem que a maioria
desses gols foram marcados contra times fracos e interioranos, Pelé
nunca tentou a carreira em gramados europeus, como Maradona. Nesse
sentido, as duas conquistas do campeonato italiano a frente de um
time mediano como o Napoli valem muito mais que as conquistas de
Pelé com o Santos – e os gols do argentino, muito mais
vitais para que essas conquistas fossem efetivadas.
Também dizem que Pelé conquistou três
Copas do Mundo e Maradona apenas uma. Porém, quando se diz
que Zico nunca conquistou uma Copa do Mundo – o maior craque
brasileiro na contemporaneidade de Maradona –, a resposta
se dá pela frase clássica do jornalista Fernando Calazans
que diz "se Zico não venceu a Copa, azar da Copa".
Ora! Se Maradona não venceu três Copas, azar da Copa.
O raciocínio é o mesmo. Porém, a questão
vai além, pois fato é que jogando a Copa do primeiro
ao último jogo, Pelé venceu apenas uma Copa, a de
1970. Na conquista de 1958, Pelé jogou apenas as duas partidas
finais. Em 1962, machucou-se na primeira partida e assistiu a conquista
do banco de reservas. Em 1966 foi eliminado na 1ª fase após
contundir-se mais uma vez.
Essa é a grande diferença entre Maradona
e Pelé. Enquanto Pelé jogou em times de altíssimo
nível, os quais tinham plenas condições de
serem campeões sem sua presença em campo – tanto
que, em 58, o time já estava na semifinal da Copa quando
Pelé entrou em campo e, em 62, o time conquistou a Copa sem
sua presença. Por sua vez, as conquistas lideradas por Maradona
jamais teriam acontecido sem sua liderança em campo. É
claro que Maradona não conquistou a Copa sozinho, mas sem
sua classe privilegiada, a Argentina jamais teria ganho a Copa de
1986 no México, sua participação foi decisiva
nos momentos mais cruciais daquela Copa. O mesmo raciocínio
vale para o vice-campeonato argentino na Copa de 1990, quando Maradona
simplesmente carregou o escrete porteño até a final
e só perdeu devido a um pênalti escandaloso que deu
o título para a Alemanha.
Maradona foi muito mais importante e decisivo nas
conquistas que participou, enquanto Pelé foi favorecido por
jogar em times e em um tempo em que, tanto o Brasil quanto o time
do Santos contavam com uma geração de craques os quais
El Pibe nunca teve ao seu lado.
Por fim, no Brasil, Pelé é reconhecido
como Rei do futebol, enquanto na Argentina Maradona é considerado
Deus. Como se sabe, Deus está acima do Rei, portanto Maradona
está acima de Pelé.
25 Nov 2020 |