Vítima de uma bala perdida
Em 5 de fevereiro de 1999, a vida da estudante Luana Cristina, de 17
anos, muda tragicamente quando ela visita a avó e vira alvo de
um tiroteio causado provavelmente por um assalto
Marcela Borelli*
Como se sente uma pessoa que enxergou até os 17 anos e em um
segundo teve essa luz é apagada por uma bala perdida, condenando-a
a viver no escuro pelo resto da vida? Isto aconteceu há seis
anos com Luana Cristina da Silva, 23 anos, nascida em 10 de setembro
de 1982 em São Paulo.
Por não ter condições financeiras de arcar com
sua criação, aos dois anos de idade Luana foi levada com
a irmã mais nova pela mãe para a cidade de Passos de Minas
(MG), onde foi criada pelos tios maternos até a família
se mudar para o Jardim Miriam, divisa com Diadema periferia de São
Paulo. Ao completar 12 anos, Elaine Cristina da Silva, mãe de
Luana, estava com relacionamento e emprego estáveis e pôde
oferecer um lar para as garotas.
Só teve contato com o pai até os três anos. Dele,
só sabe o primeiro nome, Eduardo. A ligação foi
cortada pela mãe, que não dá maiores explicações.
Em seguida, Elaine se casou com Itaci Batista, fotógrafo profissional
que conheceu por meio de uma amiga em comum há 11 anos. É
ele que Luana chama de pai.
Seu mundo desabou quando a mãe foi em Minas buscá-la.
“Idolatrava a minha avó. Foi ela quem me criou, me deu
suporte, carinho e participou de toda minha infância”. Para
retribuir a dedicação, ela e a irmã Miriam, hoje
com 20 anos, costumavam visitar a avó, Ermelinda Silva, que ainda
mora no Jardim Miriam.
Periferia violenta
Muitas vezes, foram escondidas da mãe, que não gostava
que freqüentassem o bairro por ser perigoso. Foi numa dessas escapadas
que o acidente que lhe tirou a visão aconteceu. Luana estava
conversando na rua com a irmã e quatro amigos de infância,
que conhecia há 15 anos, quando de repente passou um carro perseguindo
outro carro. Disparos são ouvidos.
Nesse momento ela foi vítima de uma bala perdida e só
não morreu porque dois de seus dedos – que acabaram quebrados
--serviram de amortecedor para o projétil. Contudo, a região
dos olhos foi atingida, e ela ficou completamente cega. "Não
senti dor, mas percebi que estava encharcada de sangue. Tinha dúvida
se estava viva ou morta, ouvia as pessoas gritando, mas não via
nada”, conta.
“Fui socorrida pelo namorado de uma amiga em um Ford Escort conversível.
Eles me colocaram deitada no banco de trás e seguimos para um
hospital em Diadema. Chegando lá o médico me deu os primeiros
socorros, mas disse que no Hospital São Paulo eu teria um melhor
atendimento”.
Luana é conduzida para o hospital, onde o diagnóstico
não demorou a ser dado: seu globo ocular estava dilacerado e
o nervo ótico, mutilado. Ela perdeu a visão, o olfato
e 50 % do paladar.
Teve de se adaptar à nova realidade. Tive de reaprender a andar,
a me vestir, a tomar banho, a cozinhar, a pegar condução...
Aos poucos, fui me acostumando com a minha nova vida.
Vida nova
Depois de armar-se de muita coragem, hoje ela tem vida praticamente
normal. "Há um ano e dois meses namoro Demétris.
Formado em Educação Física, ele foi meu treinador
de corrida, tem 20 anos a mais que eu e também é deficiente
visual”. Há seis meses, moram juntos em um apartamento
em São Bernardo do Campo.
Visito o local. Atencioso, Demétris me conduz ao quarto onde
Luana está, uma suíte com armário embutido, escrivaninha,
mesa com computador, televisão e uma sacada com vista para a
piscina do prédio.Enquanto conversamos, o casal me mostra o apartamento,
cozinha ampla, tudo muito organizado, os potes com os ingredientes ficam
sempre no mesmo lugar, para Luana não se confundir.
A porta da cozinha dá para um corredor que nos conduz até
sala, bem aconchegante, composta por uma mesa redonda com seis cadeiras,
dois sofás e uma televisão.Na poltrona estava Bob, labrador
bege que é cão guia do casal.
“Além de companheiro, Bob é meu instrumento de locomoção,
como a bengala me ajuda em atividades diárias como atravessar
a rua e pegar metrô, ele me passa segurança e independência”.
Foi presente de Demétris para Luana no Natal de 2004.
Luana relata que, depois de seu acidente, se apegou no corrida, que
hoje é sua grande paixão. "Quando comecei a estudar
braile no Cadevi (Centro de Apoio ao Deficiente Visual), descobri que
também havia esportes para deficientes visuais e comecei a praticar
corrida.
Em 2000, ela foi campeã brasileira de atletismo e em 2001 participou
da corrida de São Silvestre. Seu momento mais marcante no esporte
foi no circuito de dez quilômetros no litoral.
"Era uma corrida na praia de São Vicente eu era a única
deficiente a participar e a atleta que ganhou a corrida, após
cruzar a linha de chegada, voltou para me guiar até o final”,
conta, emocionada.
Graças a participação de Luana, os deficientes
visuais conquistaram o direito de participar da competição
sem pagar a inscrição.
Ela comenta que o preconceito no esporte com deficientes visuais é
grande. "Nas provas quando o guia fala "Abre caminho deficiente
esta passando", escuta comentários preconceituosos como:
"Imagina que eu vou perder para uma mulher, ainda mais cega”.
"Em março de 2001, participei de uma prova em Alphaville
e naquele dia meu guia não conseguiu chegar a tempo, então
um atleta se dispôs a me acompanhar, fazendo o seguinte comentário:
"Correr com aquela menina cega vai ser tranqüilo!" O
percurso era de 10 km e o guia só conseguiu correr 2 km, atrapalhando
Luana de chegar até o final da prova. “É um absurdo,
você corre com as pernas e não com os olhos”.
Hoje pratica o Golbol, praticada em quadra menor e com gol maior que
o de futebol de salão, sendo que a bola tem um guiso interno.
Cada time entra com três jogadores, que têm como função
defender a bola arremessada pelo time adversário. O público
precisa permanecer em silêncio para que os jogadores possam ouvir
o som.
A atleta diz que a novela “América” exibida recentemente
na rede Globo, mudou a forma como a sociedade encara a questão."O
preconceito não acabou, mas já sinto a diferença.Na
rua, nos restaurantes, no shoppings, todos falam comigo, não
ficam mais me tratando como uma coitadinha.
Seu grande sonho á cursar uma universidade. "No ano passado
prestei vestibular na faculdade Unip, mas infelizmente eles precisavam
de um número exato de pessoas para abrir o curso de psicologia
e não foi formada uma turma”. Enquanto não concretiza
seu sonho, trabalha como secretária na Clastur, uma agência
de turismo, onde atendo telefonemas e passa a maior parte de seu tempo
no computador com o auxílio de softwares sonoros que dizem cada
letra que está sendo digitada naquele momento.
“Não existe mistério para nós deficientes
fazermos algo. É apenas uma questão de adaptação,
prática e necessidade”, conta, otimista. Para ela, na luz
ou na sombra, o que importa é quem você é, qual
é sua capacidade de enfrentar e superar os problemas da vida.
* Marcela Borelli, 23 (maborelli@globo.com),
é estudante de jornalismo. Gosta de cinema, fotografia e pretende
ser produtora de programas de televisão.
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