Talento para ser feliz
“Me dê um limão que eu faço uma limonada”.
Esta frase é uma das frases preferidas da arquiteta Rosângela
Teixeira que, apesar de todos os contratempos da vida, conseguiu chegar
à sua meta
Monique Paoletti*
Inebriada com a beleza daquela praia, ela passeava sozinha em um coqueiral
em Arembepe, na Bahia. A maré estava baixa e, entre as pedras
que formavam pequenas piscinas, peixinhos coloridos nadavam. Azuis,
cor de laranja, verdes psicodélicos como a época paz e
amor que ela estava vivendo.
Com 19 anos, era a primeira vez que viajava sozinha. Tudo era demais
para a jovem que, não se agüentando de felicidade, dispensou
o maiô e correu para o mar.
- Nossa, que maravilha! – pensava ao boiar na água cristalina
fitando o céu estrelado - Eu sou eu. Eu posso! O mundo existe!
Eu quero tudo. Eu quero a vida. Eu quero viver!
Essa era ela. Sempre em busca de sua liberdade. Essa é ela: a
mulher perseverante, batalhadora, de traços delicados, fala gentil
e sorriso sincero. Rosângela Teixeira.
Era maio do efervescente ano de 1979. Dez horas da manhã, dia
quente e muitas tarefas a serem cumpridas até a meia noite: hora
marcada para a saída do ônibus rumo ao XXXI Congresso da
UNE, em Salvador, que definiria a retomada da entidade regida por estudantes.
Apressada, a jovem mulher escolhida para ser uma das representantes
da Faculdade de Arquitetura da USP tinha de enfrentar uma corrida contra
o tempo. Ainda faltava terminar os trabalhos pendentes, avisar o chefe
do estágio, arrumar as malas e enfrentar dona Elizabeth, sua
inflexível mãe que, como de praxe, ficaria enfurecida
com a notícia.
A chave do sobrado da família Teixeira, no Planalto Paulista,
era privilégio dos pais. Após tantas barreiras enfrentadas
em sua tétrica infância, pular o muro rumo à edícula
nos fundos da casa seria como duelar com uma formiga. E assim Rosângela
fez.
Já com suas roupas ripongas na mala e a adrenalina a mil, eis
que surgiu dona Elizabeth:
- O que você está fazendo? - perguntou a mãe com
o conhecido ar de imponência; Ela, muito calma e decidida respondeu:
- Estou indo pra Bahia. Fui escolhida para representar a FAU no congresso.
- Não. Você não vai de jeito nenhum. Nem passando
por cima do meu cadáver. – gritou histericamente, irritando-se
com a calma da filha.
- Vou sim. – retrucou Rosângela - Eu já assumi isso.
Vou de qualquer jeito e não adianta você querer me segurar.
Estou indo.
- Ahhh, mas não vai mesmo – sorriu a mãe com um
ar triunfante – Porque eu não vou te dar dinheiro e sei
que você não tem.
- Tá bom. Eu vou com o que eu tenho. Não tem o menor problema.
– e saiu em direção ao carro de Arnaldo, seu colega
de classe, com o equivalente a 100 reais no bolso.
- Tchau, hein! Daqui dez dias tô aí. – disse ela
com seu jeitão “maluca beleza”. E, pra não
perder a grande aventura, se mandou.
“Delícia! Eu vou com ELE pra Salvador” - pensava
ela ao sentar-se entre a janela do ônibus e Arnaldo Albanesi,
uma das pessoas mais bem relacionadas da faculdade não só
por seu carisma, mas também por despertar olhares e desejos de
muitas jovens estudantes. Era costume do belo rapaz negro, alto e cativante
lotar seu buggy de amigos e passear pelas ruas da USP. Ele era assim,
parecia ter uma ligação direta com o sol.
Depois de um dia tão longo e cheio de fortes emoções,
a moça de cabelos cor de mel e pele alva dormia ao lado do amigo
quando, entre a fronteira de São Paulo e Minas Gerais, o ônibus
parou repentinamente. Era quatro horas da manhã e os 40 estudantes
ali presentes começaram a agitar-se ao perceber que o motivo
era uma batida do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS),
o terror dos jovens politicamente engajados da época.
Armados com metralhadoras e usando uniformes que escondiam seus rostos,
os cinco policiais invadiram o veículo aos berros:
- Desce todo mundo. Vamos revistar tudo.
E começaram a abrir todas as malas, pegar as digitais e documentos
dos passageiros com a desculpa de estar procurando drogas. Após
horas de medo e ameaças, porém sem nada que os incriminasse,
foram liberados para seguir a viagem no ônibus que ainda quebraria
duas vezes antes da chegada.
Enfim, lá estavam eles no esperado destino: a Bahia. Foram conhecer
o alojamento –duas salas de aula improvisadas com esteiras, uma
para os homens e outra para mulheres. Mas, oras, estavam em 79, longe
das regras dos pais, discutindo a liberdade do país, com seus
chinelos de dedo, roupas de hippies e pouco dinheiro. Logicamente, a
divisão dos sexos por salas não foi rigidamente considerada.
Naquela noite quente e estrelada, após um rápido banho,
os 20 futuros arquitetos saíram andando pela cidade. Rosângela
estava encantada com tanta beleza. Passearam pelos lugares históricos,
paravam e comiam um acarajé. Subiam mais uma ladeira e comiam
um lanchinho. Assim foi até serem trazidos de volta à
realidade por um velhinho, dono de uma funerária. Era madrugada
e o grupo de bichos-grilo queria descer até o pelourinho.
- Vocês vão ser assaltados! – advertiu o senhor,
falando um baianês calminho. Atendendo o conselho, os jovens retornaram.
Afinal, estava amanhecendo.
O congresso havia começado, mas, ao mesmo tempo, curtiam muito
sol e praia. Rosângela e Arnaldo estavam cada vez mais próximos,
sempre divertindo um ao outro com o humor contagiante de ambos.
-Ô Rô. Com qual das suas duas calças Lee você
vai hoje? – dizia Arnaldo tirando um sarro.
E ela, envergonhada, pensava – Ai meu Deus, ele percebeu que eu
só tenho duas! Mas eu disfarço tão bem com os meus
panos. – motivo de muitas risadas até hoje.
Nessa viagem, Rosângela e Arnaldo se apaixonaram. s dois estavam
preocupados em manter as aparências na faculdade, o que não
era muito difícil já que fidelidade não era a preocupação
deles. A época era mágica, era tempo de se pensar em liberdade,
curtir os festivais de MPB – que ela não perdia um –
e focar os pensamentos nas inúmeras tarefas que enchiam o dia
de Rosângela.
Tudo o que ela queria era juntar dinheiro e voltar para a Bahia, o que
aconteceu umas cinco vezes após o congresso. Lá era tudo
diferente, ela tinha feito amigos, conhecido desde playboys a compositores
de MPB, entre eles, Caetano e Gil. Depressão não existia
mais. Quando dava uma brecha em sua agenda, ela corria para a pousadinha
que havia descoberto no Farol da Barra e lá vivia seus dias dourados.
“Quando o apito
Da fábrica de tecidos
Vem ferir os meus ouvidos
Eu me lembro de você.
Mas você anda
Sem dúvida bem zangada
Ou está interessada
Em fingir que não me vê”
Noel Rosa, Três Apitos
Na varanda de sua luxuosa casa localizada no melhor condomínio
da Granja Viana, zona oeste de São Paulo, ao final de uma tarde
de novembro, Rosângela, com seu jeito delicado e roupas claras,
senta na rede de cordas entrelaçadas e observa as garças
que voam em direção ao terreno ao lado. “Olha, que
linda!”, comenta enquanto se acomoda para começar a relembrar
partes de sua vida.
- O começo é sempre difícil.
De fato, para a protagonista desta história, o começo
não foi dos mais fáceis.
Elizabeth estava sozinha. Aos sete anos de idade, órfã
de pai, ela via a família se dissolver. A mãe já
havia assumido que não conseguiria tomar conta dos filhos e,
num misto de desespero e falta de condições, passou a
guarda das crianças para os irmãos. Ficou decidido que
a pequena seria criada em um orfanato paulista onde conseguira uma bolsa
de estudos, e assim passou sua infância e adolescência até
sair aos 16 anos.
Educada por freiras, Elizabeth aprendia a ser uma dona de casa aos moldes
da burguesia da época. As colegas tinham uma história
de vida completamente diferente da dela e a necessidade de acompanhar
o nível das outras, transformara a personalidade desta mulher
para sempre.
Mesmo trabalhando desde cedo em uma fábrica de tecidos, ela encontrava
tempo para se divertir e freqüentar alguns bailes. Foi num desses
que conheceu Vilarcy, rapaz boêmio, porém apaixonado por
ela.
Começaram a viver um romance e, mesmo sabendo das dificuldades
financeiras que enfrentariam, decidiram se casar no ano de 57. Tudo
pronto para começar uma nova vida em uma simples casa de fundo
na Vila Maria. Um quarto, cozinha e banheiro na parte de fora. Sossegado
até o dia 20 de novembro de 1959, quando, sentindo que iria dar
a luz, Elizabeth ligou pedindo ajuda da ausente mãe.
- Olha, isso é muito fácil – disse a avó
de primeira viagem – você pega a sua
mala, chama um taxi e vai pro hospital.
Sem apoio do marido cada vez mais ocupado, ela conseguiu ajuda de Rosa,
sua única amiga que fora escolhida para ser a madrinha de sua
primeira filha, Rosângela.
O parto foi muito difícil e, em conseqüência disso
e da falta de atenção, a jovem mãe entrou em depressão
e daí pra frente a situação só piorava.
Vilarcy tinha sido demitido da Seguradora Brasileira e estava cada vez
mais difícil trazer dinheiro para casa.
Elizabeth não estava trabalhando, pois, de acordo com a educação
que recebera, o papel da mulher era ser dona do lar. Nesse tempo, as
fatalidades aconteciam cada vez mais depressa provando que o pior não
tinha limites. Vilarcy, agora conhecido como seu Teixeira, nunca tinha
escondido sua paixão pela noite, bailes e bebida. Com tantos
problemas, ele encontrou no álcool uma válvula de escape.
Tudo o que ela tinha planejado para sua vida estava indo por água
abaixo. Ela não estava escrevendo a historia como fora ensinada
e se sentia sem chão. Queria cuidar do lar, mas, ao olhar a sua
volta , pensava: “Arrumar o que? Bordar o que? Cozinhar o que?”
– e dona Elizabeth começou a ter sérios problemas
psicológicos, chegando a ser internada.
Engravidou novamente, dando à luz outra menina, Rosane, três
anos mais nova que Rosângela.
Seu Teixeira não conseguia se acertar em nenhum emprego então
tentava lucrar com os bicos que encontrava. Não tinha jeito,
Dona Elizabeth teria de ajudar de alguma forma e, quando Rosane completou
dois anos, ela começou a trabalhar como vendedora ambulante.
O fato era que a mãe não tinha com quem deixar as meninas,
então entregou para Deus. Era uma criança de cinco anos
de idade cuidando de uma de dois. Por incansáveis vezes, Rosângela
apanhava por fazer coisas erradas como deixar o arroz queimar ou porque
Rosane havia riscado a parede. Tudo era motivo, inclusive a grande paranóia
de limpeza da mãe. “A Rosane era minha bonequinha, teve
uma época que meu pai estava vendendo um lote de remédios
e ficava tudo lá em casa. Eu abria, pingava dez gotinhas na boca
dela e ela tomava. Uma coisa de louco!” – recorda a protagonista.
Mudaram-se para um pequeno apartamento em Santana, lugar de onde Rosângela
guarda ao menos uma boa lembrança infantil. Aconteceu em um Natal
quando ganhou uma boneca com mesinhas e cadeiras de seu tamanho. Toda
aquela euforia com a chegada do papai Noel é uma das únicas
cenas que são contadas com carinho.
Novamente, a família Teixeira mudava de teto. O novo apartamento
era na Rua dos Estudantes, Liberdade - “naquele lugar onde, era
só pingar, que alagava” – comenta.
Os ares mudavam, os tempos e os lugares também, mas o pai continuava
em um beco sem saída. Alcoólatra, com freqüência
era espancado na rua, assaltado, batia o carro (quando tinha) deixando
a família sem saber se voltaria no dia seguinte. Uma noite, ao
chegar bêbado da rua, desmaiou em cima de Rosângela que
não conseguia sair debaixo de seu pesado corpo. Mas a situação
tomaria rumos melhores.
Numa tarde, ao chegar sóbrio do trabalho, Seu Teixeira encontrou
a filha cozinhando em cima de um caixote de laranja. Tomou-a nos braços
e começou a chorar quando soube que aquilo era sua rotina.
- O que eu estou fazendo com vocês? – indagava à
pequena.
Depois desse episódio ele foi procurar ajuda. Rosângela,
sempre companheira, ia junto às reuniões dos Alcoólicos
Anônimos incentivando o pai. E, ao mesmo tempo, suas atenções
voltavam-se cada vez mais à escola.
Tudo o que ela queria era a atenção que não tinha
em casa e lá descobriu, apesar de sua timidez, grandes amigos:
os professores. Como Rosane não podia ficar sozinha e a escola
era a partir de quatro anos, Rosângela só pôde começar
a estudar aos sete, sendo que as crianças da idade dela já
estavam alfabetizadas.
Esforçando-se ao máximo para acompanhar os colegas do
Colégio Nossa Senhora da Paz, suas notas passaram de regulares
para ótimas no período de um ano. Ela adorava tudo que
aprendia e descobriu na leitura seu maior prazer.
Escondida debaixo da cama do simplório apartamento, ela lia aproveitando
o feixe de luz que vinha da janela. Com a cabeça apoiada nas
pequenas mãos e o livro entre os cotovelos, viajava sem sair
do lugar. Lá era seu pequeno e único espaço onde,
mesmo confinada, sentia-se com a cabeça completamente livre.
- “Com 12 anos eu já tinha lido todos os clássicos
porque era um prazer pra mim. Eu me isolava. Criava meu universo”
– conta Rosângela. Pelo menos até o momento que ouvia
a chave girar na fechadura. Aí sim, começava a sentir
medo do que viria.
Seu destaque na escola era cada vez maior. Os professores ficavam estimulados
com o desempenho da menina e sempre a incentivavam a participar das
mais variadas tarefas. Quem vai declamar a poesia do dia dos pais? A
Rosângela. Papel principal nas peças de fim de ano e, a
partir do quarto ano, era a melhor aluna dos três mil estudantes
do colégio.
Saias ou calças cinza, camisa branca, meia até o joelho
e sapatos pretos era o uniforme obrigatório. Ela odiava. Achava
horrível principalmente porque Dona Elizabeth tinha aquele pensamento:
“vai crescer mesmo, então compra maior pra durar!”
As roupas ficavam todas largas e disformes no corpo rechonchudo da menina-moça.
Um dia, voltando da escola, ela se deparou com uma nota na calçada
suficiente para comprar o que tanto queria. Olhou para o chão
com um sorriso de orelha a orelha e exclamou:
- Minha calça!!!
No outro dia, chegou ao colégio se achando. Feliz por chamar
a atenção dos meninos com a nova calça cinza do
tamanho exato (!). Infelizmente, já não era só
dos garotos que ela despertava interesse, mas também dos homens
e, considerando o lugar onde passou a morar nessa fase, não era
coisa boa.
O prédio na Radial Leste tinha oito andares. O dela era o último
e, quando chovia, era mais dentro do apartamento que fora. Vizinho ao
prédio era um prostíbulo pelo qual ela era obrigada a
passar em frente para qualquer coisa que fosse fazer. Não tinha
jeito, os homens freqüentemente, quando não se contentavam
em ficar cantando, tentavam agarrar. Por diversas vezes Rosângela
ficava namorando a altura da janela do apartamento pensando se ali seria
a saída daquele mundo podre. - “Quando eu era criança,
tinha impulsos suicidas. Minha vida era tão ruim. Tive dois coleguinhas
de escola que se mataram porque aquele universo era claustrofóbico
e doentio”.- lembra ela, com os ombros pesados.
Precisava focar os pensamentos em outras atividades. Por isso, três
anos após o nascimento de Renata, sua terceira irmã, conseguiu
um emprego de recepcionista em um escritório de advocacia. Lá
permaneceu por dois anos, até os 16, quando recebeu a proposta
de dar aulas particulares.
Maravilha! Ela ia ganhar mais dinheiro, com horários flexíveis
e ensinando o que gostava. Sua inteligência era mesmo uma virtude,
pois tinha épocas dela não ter nem caderno da escola.
Prestava atenção nas aulas e já era suficiente.
Com mais tempo e algumas reservinhas financeiras, começou a investir
em hábitos que mantém até hoje como ir a teatros,
cinema, shows e passeios culturais. Apaixonou-se por Elis Regina e também
por um colega de classe.
Fausto lia os mesmos livros que ela e conseguia acompanhar o nível
de estudos de Rosângela. Empenhou-se em conquistá-la e,
numa cena praticamente cinematográfica, aconteceu o primeiro
beijo. Quando o jovem apaixonado foi acompanhá-la até
o ônibus, antes de fechar a porta, subiu as escadinhas e, confiante,
foi de encontro à sua querida. O primeiro de muitos beijos, com
a intensidade dos que haveriam de vir.
Dois meses depois do ocorrido, este dava espaço para Julio Navarro,
que era amigo de uma amiga. Foi amor à primeira vista. Mas rápida
também foi a desilusão. Como ele tinha 26 anos e Rosângela
17, a liberdade não era a mesma para os dois. Dona Elizabeth
não aprovava o namoro e, por isso, tentava dificultar de todas
as maneiras possíveis:
- Você só vai sair com ele se levar suas duas irmãs.
– ordenava, sabendo que a filha não aceitaria, já
que Renata e Rosane eram crianças.
Julio desanimou e sumiu – “Eu queria matar minha mãe”
recorda Rosângela, apertando as mãos.
Não adiantava querer ficar com alguém que a mãe
não aprovasse. Tendo isso em vista, Rosângela conheceu
Alfredo. Estudavam na mesma escola, tinham amigos em comum e, o mais
extraordinário, dona Elizabeth gostava do rapaz. Por três
anos eles passaram juntos as fases mais difíceis e decisivas
da adolescência: o fim do colégio, cursinho, vestibular
e, vencidos pela distância, o fim do primeiro amor.
Era meia noite. Rosângela e Alfredo, seu namorado, esperavam ansiosamente
a chegada do jornal Última Hora numa das únicas bancas
24 horas da época, na Praça João Mendes. Lá
estaria a lista dos aprovados na Fuvest. Apesar de ter feito cursinho
nos últimos seis meses de colégio, ela não tinha
referências de ranking e não esperava passar. Por isso,
o primeiro nome a procurarem foi de Alfredo, que havia prestado medicina.
- Meu nome não está na lista. – disse ele, cabisbaixo.
E começaram a procurar o dela.
- AQUI! Passei! – gritou a jovem, explodindo de felicidade. O
namorado comemorou como se fosse o nome dele impresso entre as centenas
de candidatos aprovados.
Saíram radiantes, cantando e dançando até chegarem
ao apartamento da Rua dos Carmelitas, na Liberdade. A situação
da família havia melhorado nos últimos anos. Seu Teixeira
estava trabalhando, dona Elizabeth enfim podia ficar em casa, tinham
carro e casa na praia. O apartamento não era dos melhores. No
térreo era uma fábrica de esfiha, que deixava o prédio
inteiro com cheiro de cebola e carne. Ao subir um lance de escadas era
uma sede da Igreja Universal. Outro lance de escadas e uma escola de
Tae Kwon Do – “Era aquele barulho. Pau. Iááá.
Pow o dia inteiro!” - comenta Rosângela, com humor. E no
andar acima moravam os Teixeira.
Ao entrarem comemorando no apartamento, foram recebidos com um surto
repentino de dona Elizabeth:
- O que é isso?! Meia noite e meia? Isso não é
horário de se chegar numa casa de família – e entre
diversos insultos e xingamentos, começou a jogar todas as roupas
de Rosângela pela janela.
O fato de a filha ter entrado na FAU não fazia a alegria da mãe.
Mas seu Teixeira partiu em defesa de Rosângela e disse que se
ela saísse de casa, ele iria junto.
- Mas que loucura! Arquitetura? – gritava dona Elizabeth –
Você não tinha que estar pensando em fazer faculdade. Já
que você é tão inteligente, devia estar preocupada
em trabalhar no Banco do Brasil e construir uma carreira sólida.
Dona Elizabeth pensava apenas em ter segurança financeira. Queria
frear Rosângela e, cada vez mais, perdia o controle da situação.
Algumas semanas depois foram passar uns dias no novo apartamento de
veraneio na praia de Santos. Surpreendentemente até a avó
materna foi. Essa viagem marcou o fim das numéricas surras que
Rosângela havia tomado durante sua vida.
Após levar os dois primeiros tapas, durante uma discussão,
a filha segurou os braços da mãe contra a parede e, determinada,
deu o aviso:
- Você nunca mais vai me bater. Se você me bater, eu vou
te bater. Você pense bem porque se você fizer isso, eu vou
revidar. – dona Elizabeth chorava e tinha raiva, mas a partir
daí, ela teria de se controlar e lutar contra o ódio que
a filha desenvolvera por ela.
O namoro com Alfredo não ia bem. Ele havia passado na faculdade
de medicina em Santos, litoral paulista, e sua mãe estava com
câncer, fazendo-o se sentir responsável em encontrar a
cura para a doença.
O casal mal se via. Rosângela queria curtir sua nova fase e, presa
num relacionamento como este, se sentia culpada de viver a vida em São
Paulo enquanto o namorado passava por tanto sofrimento. O fim deste
relacionamento foi muito traumático. A jovem não quis
mais saber de namoro durante um longo período, até tentou
gostar de alguns paqueras, mas a época não parecia ser
frutífera em sua vida amorosa.
A vida de Rosângela, no auge de seus 20 anos, estava repleta de
tarefas. Estágio, faculdade período integral, curso de
dança, inglês e alemão. Seu dia era cheio. Ajudava
a pensar menos em Alfredo e tentar ressuscitar sua vida amorosa.
Foi no curso de alemão que apareceu um jovem médico residente
do Hospital das Clínicas. Começaram a sair algumas vezes
até que um dia, depois do curso, ele a convida para um jantar:
- Hoje você vai conhecer a minha família. Eles vieram de
Recife e estão hospedados num hotel. – disse o, até
então, colega de classe.
- Tudo bem. – topou ela.
No meio da refeição, o pretendente levanta e anuncia:
- Pai, mãe, eu tenho uma notícia pra vocês: esta
é a mulher com quem eu vou me casar. – disse, confiante.
Levantou-se da cadeira e mostrou a aliança que havia comprado
para Rosângela.
Assim como a família do rapaz, ela estava boquiaberta e achando
a situação ridícula. Para não humilhá-lo
em frente a todos, fez a cena que ele esperava. Disse sim e aceitou
a aliança.
No carro, sentindo que aquilo não poderia ir mais longe, a jovem,
com toda a sua delicadeza, tentou explicar ao insistente pretendente
o quanto a decisão era precipitada. Não queria namorar
ninguém, quanto mais noivar e casar. Estava fora de questão.
- Mulher é assim mesmo – gritou ele – é só
a gente dar mole que isso acontece. Sai do meu carro!
E Rosângela saiu em direção ao novo sobrado onde
estava morando com a família, no Planalto Paulista. Ao colocar
a chave na porta, ele, aos berros, ordenou que ela voltasse ao carro.
Ao olhar para trás, a cena que viu foi inesquecível: ele
estava com uma arma apontada para Rosângela e, com medo, ela foi
de encontro ao ameaçador homem:
- Olha, vai pra sua casa, vamos descansar. Foi um dia de emoções
muito fortes. Pensa bem, não vai fazer besteira e estragar com
a minha vida e a sua. Se acontecer algo comigo, todos sabem que eu estava
com você. – disse, assustada, tentando convencê-lo.
E deu certo. O maluco colega de classe foi embora e a partir daí
Rosângela fugia dele como o diabo da cruz, motivo de muitas gargalhadas
hoje.
Fazendo a jovem esquecer das situações ruins pelas quais
havia passado, lá estava o apaixonante Arnaldo Albanesi. trinta
arquitetos sob supervisão do casal.
Apesar de ambas as famílias não apoiarem o namoro, eles
estavam levando o relacionamento. Rosângela chegou a levar um
tapa da racista avó quando apresentou o namorado em um jantar.
Arnaldo era de uma família espírita de liderança
de uma comunidade enorme. A mãe dele nunca escondera sua antipatia
pela namorada, que era um pouco de cada religião.
Chegou inclusive a conhecer Chico Xavier com Arnaldo quando estavam
indo para um congresso em Brasília. O encontro foi mágico.
O líder, olhando nos olhos da moça, disse assim que ela
adentrou a sala:
- Eu estava te esperando. Você é a namorada do Arnaldo,
né? – ela confirmou – Eu queria te falar que o importante
não é ter religião. É ter vida e coração.
– e abraçou Rosângela que sentiu de imediato a grandiosidade
de Chico Xavier.
Mesmo apaixonados, o relacionamento foi enfraquecendo por conta dessas
diferenças e acabou terminando quando Arnaldo começou
a namorar a religiosa secretária da mãe. Sem muito drama,
eles separaram o escritório e suas vidas.
A guinada na carreira da jovem arquiteta estava prestes a se concretizar.
No último ano de faculdade, Rosângela recebeu a ligação
de um amigo dizendo que estava contratando arquitetos para um grande
projeto. Animada, ela levou alguns de seus trabalhos de escola e, durante
a entrevista, apresentou ao seu futuro chefe.
Impressionado com o talento dela, contratou-a mesmo não sendo
formada, ganhando um salário dez vezes maior que o do estágio.
O projeto seria escrito todo em inglês por ser em uma ilha no
Caribe. Era um mega-trabalho ao qual ela se dedicou por inteira durante
um ano e, ao final, a arquiteta júnior tornou-se a coordenadora,
supervisando o trabalho de todos os arquitetos.
A carreira estava indo de vento em popa com os novos contatos que havia
conseguido do projeto anterior. Com o primeiro salário ela foi
cuidar da saúde, com o segundo trocou o carro e, aos poucos,
ela ia ganhando cada vez melhor e alcançando o sucesso.
Surpresa com o pedido de ajuda de sua melhor amiga, Rosângela
foi ajudar Marcio, um colega de classe, com um projeto que ele haveria
de terminar no prazo de dois dias. O que o impossibilitava era um braço
quebrado e o orgulho de pedir ajuda. Tendo isso em vista, sua namorada
tomou as rédeas da situação e pediu à competente
amiga que desenhasse de acordo com o que ele queria.
Rosângela desenhou, passou a limpo e entregou ao amigo que, por
alguma razão desconhecida, sempre tentava evitá-la.
A vida amorosa da recém-formada arquiteta estava indo muito bem.
Namorando com Sérgio, um bem sucedido empresário, estava
amando novamente.
Marcio precisava de um profissional para desenvolver um grande projeto
e, sabendo da competência da colega, fez um convite a ela.
Passaram a dividir um escritório que alcançava o sucesso
cada vez mais rápido. O espaço tinha sido do pai de Marcio,
que também fora arquiteto. Rosângela achava interessante
a forma como o novo amigo lidava com o resgate da memória do
pai. A história era trágica. Aos dez anos, Marcio havia
presenciado a morte de seus pais em um terrível acidente de carro.
“Minha mãe gostava muito do Marcio. Acho que ela se identificava.
O que aconteceu com ele era parecido com a história da vida dela.”
– conta.
Fundaram a empresa Zalkind & Teixeira existente até hoje
e juntos, construíram muitas coisas mais...
Ela estava apressada. Sabia que não devia ter emprestado o carro
para Marcio, seu sócio, ir às obras que faltavam. Sergio,
seu namorado carioca, tinha acabado de chegar em São Paulo e
era a pessoa mais metódica com horários que ela já
conhecera.
Vendo que ele não chegaria a tempo de devolver o carro, Rosângela
chamou um taxi e, quando estava entrando no veículo, Marcio resolveu
aparecer.
Após uma breve bronca, ela correu para buscar Sérgio,
que já estava mal-humorado com o atraso. Após a pequena
discussão, ele tentou descontrair o clima:
- Ro, que legal! Você instalou um toca-fitas no seu carro. –
e, sem mais, apertou o “play”. Toca-fitas? Ela não
tinha um. Nem queria.
Quando começou a tocar, o semblante do casal mudou completamente.
Marcio havia gravado uma fita cheia de poemas de amor e músicas.
Praticamente uma declaração à Rosângela que
não sabia o que fazer naquela situação.
Acabou com a noite. Sérgio estava possuído de raiva.
Marcio não escondia mais a vontade de ficar de vez com aquela
mulher. Rosângela estava firme com Sérgio, praticamente
casando. Sua amiga não mais namorava Marcio, o que tornava a
situação propícia para um romance, já que
os trabalhos ficavam cada vez mais intensos.
Tudo estava caminhando ao altar quando uma verdade chegou à protagonista.
Sérgio havia traído sua confiança e isso era inaceitável
para ela. O motivo foi um daqueles segredos guardados a sete chaves,
que ela prefere não revelar. Não teria volta.
Rosângela chorava copiosamente nos ombros do colega, companheiro
de trabalho e amigo, Marcio, o término do relacionamento. Ele
a consolava sem nunca esconder que sua real intenção era
ficar com ela.
E assim foi acontecendo. Aos poucos. Ótimo foi ficando até
que ela teria de fazer uma escolha. Os pais estavam mudando para um
sítio no interior e o sobrado do Planalto Paulista seria vendido.
Morar sozinha, com sua irmã Renata ou com Marcio?
Radiante ela comemora com alguns seletos amigos seu aniversário
de 46 anos.
Em volta da mesa estão as pessoas que ela mais ama. O pai, seu
Teixeira, carregando a memória de sua falecida mãe. Pablo,
seu sobrinho e praticamente o filho que ela não teve. Alguns
casais de amigos íntimos e Marcio. Seu marido, companheiro, sócio
e amigo. Trocando olhares de admiração e carinho, o amor
cultivado por ambos foi o que prevaleceu em metade de uma vida convivendo
cotidianamente. Eles sempre estiveram um em frente ao outro. E assim
pretendem ficar.
* Monique Paoletti. Futura jornalista, apaixonada por música,
família e literatura.
Um pouco indecisa, muito preguiçosa e muito intensa. Tem dificuldade
em definir coisas complexas em poucas linhas. Confissão perigosa
para um jornalista. Ou não.
moband@uol.com.br
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