Santo Forte
Aos 20 anos, Franklin César teve sua vida transformada por
um acidente. Graças à fé que ele não sabia
ter, conseguiu encontrar seu verdadeiro caminho e ser feliz
Mariana Lisboa*
Dia 17 de outubro de 2005, São Paulo, Bairro do Ipiranga. De
um sobrado revestido de pedras, carente de reparos, com quintal cheio
de plantas, ouve-se o batuque de atabaques, tão forte que se
confunde com batidas do coração.
Bem em frente à rua de casas de padrão médio encontra-se
uma favela repleta de evangélicos. Alvoroçados com o movimento
da casa, e sabendo que se trata de uma festa religiosa, gritam a todo
o momento:
__ Macumbeiro.
__ Filho do diabo.
Não satisfeitos, jogam pedras em direção ao segundo
andar da casa, onde fica o pequeno terreiro. Alheio ao protesto, o orixá
continua dançando vibrante e majestosamente.
Os convidados estão vestidos de forma simples. Os homens de calça
e camisa. Já as mulheres usam saia ou um pano chamado ojá,
que se estende da cintura ao calcanhar. É que têm que proteger
o que lhes é mais sagrado: o útero, o órgão
que traz a vida. Os filhos de santo usam trajes próprios, em
geral saias para mulheres, calças para homens e batas para ambos,
sempre com muitos colares de fios de conta.
No meio do terraço, um homem incorpora Iansã. Tem corpo
pequeno, pele e cabelos claros. Neste momento, apresenta feições
delicadas. As pálpebras fechadas não permitem ver os olhos,
verdes. Veste saia rodada feita de tecido vermelho e brilhante. Quando
Iansã se vai, ele recebe uma menina, a erê Espadinha.
Brinquedos é o que mais tem nesta festa infantil. Espadinha se
farta de doces, fala sem parar com os convidados, chegando a colocar
doces na boca das pessoas. Pula, mexe nos brinquedos, canta, abraça
fortemente a todos, mostrando a saudade que sente de todos. Neste afã,
coloca alguns participantes em saias justas ao revelar segredos particulares.
Depois da farra, abençoa os brinquedos que seriam doados para
crianças doentes, agradece a presença de todos e as doações
feitas. Antes de ir embora, se agarra a uma boneca ganha na festa, sujando-lhe
a cara.
O homem por trás do erê
Ao voltar a si, Franklin está suado, sujo e com o rosto vermelho.
É visível o cansaço físico, pois o corpo
esteve em movimento intenso. Pede licença aos convidados para
tomar um banho. Mesmo exausto, está radiante ao ver a casa repleta
de pessoas amigas, cerca de 20 convidados.
A vida de Franklin Marcondes César, 41 anos, pai de José
Carlos, 18, e Tainá, de sete meses, sempre foi como os ventos
de Iansã: inesperada e devastadora. É o terceiro filho
de quatro irmãos, sendo o mais comunicativo deles e mais companheiro
da mãe.
Formado em técnico de agropecuária e psicologia, sempre
trabalhou muito. Começou em fazendas, depois numa clínica
para crianças e, por último, em uma das creches do metrô.
Fez especialização em Portugal e na Espanha graças
a uma bolsa de estudos. Ficou um ano e meio e se especializou em musico
terapia para animais, conseguindo juntar suas grandes paixões:
psicologia e bichos.
Cursou a faculdade Marcelo Tupinambá (ligada a USP), de linha
freudiana, onde a religião é totalmente desvinculada.
Tinha uma postura radical e não acreditava em nada, apesar da
sua família ser praticante de candomblé. Sempre achou
que a religião da sua mãe e de seus irmãos era
uma maneira da pessoa tentar se sentir menos culpada pelos atos da vida.
Mera válvula de escape.
Aos 20 anos, Franklin adotou em parceria com a mãe seu primeiro
filho, José Carlos, abandonado na porta de sua casa com alguns
dias de vida. “Sempre quis ser pai e, como não posso ter
filhos, foi natural”.
Quando completou 23 anos, estava bem de vida. Trabalhava nas creches
do metro, atendia numa clínica que tinha aberto e namorava há
certo tempo. Um dia, ele e uns amigos foram a uma festa de formatura
na Cantareira. No caminho, passaram em frente a um terreiro de candomblé.
Dentro do carro, Franklin passou mal. “Achei que minha pressão
tinha caído”. Ficou duas semanas sem conseguir levantar
a cabeça, tamanha era a dor.
A dor não passava e ele foi ao médico. Fez vários
exames: labirintite, sangue, HIV, mas ninguém achava o que era.
Com insônia, foi ao psiquiatra, que receitou Lexotan e Dormonide.
Os remédios induziam sono, mas não garantiam repouso.
No desespero, resolveu atender ao pedido da família para conhecer
o candomblé. Foi a uma festa no terreiro do pai de santo de seu
irmão, Alfredo. Quando chegou lá, “bolou”,
termo usado para designar pessoas que quase incorporam. “É
quase um desmaio, mas você sente tudo. Seu corpo esfria e você
fica consciente, mas não consegue reagir. É como se fosse
um processo de cartase”.
Quando Franklin conseguiu se mexer, abriu a porta do quarto de santo
e quis sair dali imediatamente. “Pensei que estava ficando louco”.
O babalaô (pai de santo) lhe disse:
__Olha, você tem que fazer santo, teu destino é esse.
__ Mas eu não acredito nisto.
__ Franklin, a gente pode mudar tudo menos o destino. Você veio
com essa missão, não interessa se é no candomblé
ou no kardec, seu coração vai dizer aonde você vai
se encontrar.
Quatro dias se passaram e ele foi com os mesmos amigos conhecer uma
cachoeira em Guarulhos. Quando chegam, está sendo realizada uma
raspagem de santo na cachoeira. Franklin pressente que era algo relacionado
ao candomblé. Quer ficar longe. Nem desce com os amigos até
a bela cachoeira, que desemboca num lago imenso. Fica em cima do morro,
cheio de pedras, esperando acabar o ritual.
De repente, ouve alguém chamá-lo.
__ Franklin.
Procura e não encontra ninguém por perto.
__ Franklin.
De novo, nada. “Não é possível” pensa.
__Franklin!
Quando olha em direção às pedras, uma avalanche
cai sobre ele. Seu instinto é mais forte e ele se joga do alto
do morro em direção à cachoeira. Aparentemente
nada acontece. Eis que uma pedra monstruosa cai em sua perna, decepando-a.
Na fúria, busca o pé que ficou boiando na água
e o coloca debaixo do braço.
A confusão e desespero é grande. Todos que estão
no local tentam tirá-lo de lá. É difícil,
porque o peso dele dobrara dentro d’água. E ninguém
conseguia subir o barranco escorregadio, havia chovido dias antes.
O babalaô presente invoca o orixá, Xangô. A menina
que incorpora a entidade tinha a metade do tamanho de Franklin, mas
o carrega sozinha no braço como se ele fosse um cobertor.
Os amigos correm para o hospital mais próximo da cidade. Ele
está perdendo muito sangue, sua única preocupação
é não ficar inconsciente. E o que mais quer é colocar
seu pé no lugar.
Enquanto os médicos o levam para a sala de cirurgia, ele passa
sua ficha completa. E apaga quando lhe aplicam morfina.
A cirurgia dura oito horas, tempo suficiente para tirar todo o lodo,
e refazer os ligamentos.
Acorda com toda a família ao seu redor.
_Quero ir para casa.
_Não é possível. Você esta sob observação
dos médicos. Responde o Alfredo, irmão mais velho.
O pé não responde a nenhum sinal. Franklin corre o risco
de ter que amputar o membro.
Sua mãe desesperada suplica:
_Pelo amor de Deus, meu filho. Peça para os orixás, porque
se não você vai ficar sem seu pé.
Uma amiga lhe presenteia com “A gnose de Jung”, livro que
muda sua trajetória. Recheado de poemas, Franklin fica impressionado
com “Os sete sermões aos mortos”. Identifica-se com
a narrativa de Jung que conta que estava no seu escritório e
ouviu vozes, em seguida objetos começaram a voar em cima dele
e depois de sete dias trancado estudando tudo que estava acontecendo,
sai com a teoria de sua psicologia pronta.
Depois da leitura do livro, rezou: “Não sei quem você
é, se é Deus ou o que que é, eu só sei que
você chama orixá, se você existe mesmo me faz ter
uma outra concepção de vida. E me deixa ficar com a perna”.
Naquele momento uma tranqüilidade invadiu o seu corpo e o tomou
por inteiro, fazendo adormecer sem necessidade de remédio.
Doze horas depois, o médico aparece no quarto e como todo o dia,
enfia uma agulha no pé a espera de alguma reação,
desacreditado de uma resposta, surpreende-se com o grito de dor do paciente.
“O orixá trouxe o retorno que eu esperava, com o pé
reagindo não seria preciso a amputação”.
Transferido para um hospital em São Paulo, começa sua
luta para voltar a andar. Primeiro tem que fechar uma ferida de uns
dois centímetros de profundidade causada pela perda de osso,
músculo e carne; para então colocar os pinos que colaram
o rompimento.
O dinheiro se esgota. Devido ao acidente que o impossibilita de andar
é obrigado a fecha a clínica e os amigos e namorada desaparecem.
Seis meses depois do acidente Franklin reconsidera e pede para ver o
Pai de Santo. O Babalaô passa algumas ervas e faz umas orações,
na saída faz um convite para uma festa chamada “Olubajé”
(o senhor que como o negativo), festa de Omolú, orixá
dono das pestes das feridas.
Na festa fica admirado com a beleza das danças que pouco entende.
Os orixás se recolhem para o quarto de santo indicando o fim
da cerimônia. Um senhor o chama dizendo que Omolú quer
vê-lo. Ressabiado, pede ajuda para ir até o orixá.
No templo vê o pai de Santo incorporado em Omolú.
_ Posso curar sua perna?
Disse o orixá.
_ Se o senhor puder.
Responde Franklin.
Sem pedir nada em troca inicia o ritual da cura. Pede umas ervas pra
mascar, come toda a ferida, mastiga outras folhas e cospe dentro do
ferimento.
Comovido com a generosidade do santo e pergunta como poderia agradecer.
_ O único agradecimento que quero é que você ajude
os outros, somente isso.
Onze dias depois retira as ervas mascadas da ferida, para surpresa de
todos tudo está cicatrizado. “Fiquei emocionado e agradecido
aquele orixá. Prometi que como agradecimento rasparia santo,
pra ajudar os outros, se aquilo era minha missão”.
Em seguida vai para mesa de operação colocar os pinos.
Sete dias depois tem alta.
Sai do hospital e vai direto cumprir sua promessa, recolher para raspar
santo (entrar para religião). Aceita porque deu a palavra ao
orixá e está muito agradecido, mas não acredita
na religião. Agora simplesmente tem fé em Deus.
Participa do ritual junto de mais três pessoas. No quarto de santo
eles aprendem a rezar e a pedir benção em ioruba, comem
e dormem bastante, e fazem algumas coisas que são próprias
da reunião.
A cerimônia começar pelo buri (benção a cabeça),
é um batismo, para entrar na religião. Depois todos foram
para cachoeira realizar os atos da raspagem de santo.
“Foi me dando um sono muito grande, quando acordei, pensei que
estava sonhado que tinha ido à cachoeira”.
_ Franklin, como você está se sentindo?
_Eu estou me sentindo muito bem Alfredo. E quando vão começar
os atos na cachoeira, porque eu quero ir embora.
_ Você ficou virado de santo por quatro dias. A festa da saída
do orixá foi ontem, e daqui uma hora você vai poder ir
para casa.
Pensa que é uma brincadeira. Só percebeu que era verdade
quando colocou a mão na cabeça e sentiu que estava careca.
E para confirmar que aquilo tudo tinha acontecido ele pode ver dias
depois a filmagem da festa da saída do orixá. “Passei
a acreditar em orixá, quando eu via a fita. Mas eu pensei que
não iria incorporar novamente, achei que tinha sido só
naquele momento.”
Na festa o santo saiu, dançou, pulou pra gritar o nome dele,
sendo que Franklin não conseguia dar um passo sem muleta.
Na saindo da obrigação, o Babalaô lhe falou:
_Você é feito de Logun Edé que é um santo
que tem muito carinho pelo filho, duvido que ele vá deixar os
pinos na perna, você não tem necessidade disso.
Franklin não acredita muito, mas fica com uma pontinha de esperança.
Depois dos atos, foram obedecidos três meses de preceito. Nesse
período Franklin não manteve relações sexuais,
não bebeu, não comeu carne vermelha, dormiu numa esteira,
e satisfez outras obrigações do ritual. “Não
é nada daquilo que mostram, é uma coisa muito tranqüila.”
“O momento da incorporação traz uma sensação
muito gostosa é como tomar um porre, cair na cama, dormir, acordar
no outro dia e não lembrar de nada, não é um desmaio
é uma coisa muito agradável, o desfalecimento dá
uma sensação ruim”.
Depois desse processo Franklin é tomado por um sentimento muito
nobre, o de perdoar, mas o efeito não permanece muito tempo.
“O Candomblé me fez sentir uma pessoa melhor”.
Acredita que por ser uma religião afro o candomblé é
visto ainda com muito preconceito. “Ninguém fala você
é espírita, você é macumbeiro. Ninguém
fala você é um sacerdote, você é pai de santo.
É um termo errado. Nós somos zeladores dos segredos, nos
cultuamos a natureza.”
É convicto que cada um nasce com um odu (destino) e tem certeza
que o dele é cuidar de criança.
“Filho não é da gente, filho é uma confiança
de Deus pra gente. Olodumare, que para nós é o arquiteto
do mundo, confia um espírito pra você educar. E você
tem que fazer o melhor possível para ele, é a grande prova
da nossa existência.”
Articula que temos que ser críticos e misericordiosos nessa vida,
inclusive na religião, principalmente o candomblé que
é uma religião onde o orixá mais novo viveu quinhentos
anos antes de Cristo. E, sobretudo eles sacerdotes, para não
usar a religião para ganhos financeiros. Atualmente ele sobrevive
do canil que tem, vende filhotes de lhasa apso. “O dinheiro que
recebo de trabalhos do candomblé parece que é amaldiçoado,
ele vem pra minha mão, mas como vem sai. Não dá
pra guardar. É só para pagar as despesas, e às
vezes nem ele é suficiente”.
Fica indignado com pessoas que fazem curso de búzio e aproveitam
do jogo como profissão. “O jogo de búzio é
como a energia dos orixás vem nos mostrar dois caminhos. É
preciso ter um dom para se jogar búzio. Na obrigação
de santo é feita uma lavagem nos olhos com ervas, junto com os
atos próprios da cerimônia. Você passa a ter uma
visão diferente, é como se alguém falasse dentro
da sua cabeça, mostrando o caminho, uma espécie de premonição.”
Não gosta de jogar búzios, porque segundo ele a maioria
das pessoas não gosta de ouvir a verdade. “Não é
a minha verdade é a verdade do orixá.”
Ele crê que o candomblé é uma religião formidável,
porque não condena nada. “Não existe pecado, não
existe demônio, você pode tudo desde que saiba que o hoje
é o pai do amanhã”.
Franklin acredita que com a religião ficou menos preconceituoso,
passou a aceitar que as pessoas têm o direito de escolha. Mas
nem tudo são flores confessa que até hoje acha complicado
incorporar orixás do sexo feminino.
“É complicado você ver seu corpo se alterar. A sua
pele fica mais sensível quando um orixá mulher vai te
pegar. O processo de incorporação é complicado.
Você passa a ter uma outra visão, uma visão que
só uma mulher pode ter. Mas não é a de desejo por
homem, tem muita gente que pensa assim. Existe dentro de você
um amor que você não consegue entender, e quando você
incorpora uma santa mulher você passa a entender”.
Desvenda que o candomblé é uma religião para as
mulheres. Porque elas conseguem os grandes cargos no culto. “A
mulher tem o que é mais sagrado, o útero. A árvore
da vida está dentro da mulher. Então como o homem pode
querer chegar a alguma coisa. A concepção em ioruba é
diferente, o homem ioruba é diferente. A mulher é sagrada,
a criança é sagrada. O homem tem que mostrar o caminho.
Mas a sabedoria está dentro da mulher”.
Não se revolta por ter perdido tudo o que perdeu. Confessa que
se sente aliviado, porque acredita que estava construindo um castelo
de cartas. “Achava que tinha um monte de amigos que não
tinha. Pensava que construía uma vida legal, mas que na realidade
era uma vida vazia. Não troco o que tenho hoje pelo que tive
naquela época”.
Pretende adotar mais crianças, “não é uma
coisa desenfreada agora tenho uma menina, que precisa de educação,
ela não me pediu para adotá-la. Quando ela tiver seus
quatro ou cinco anos, eu vou adotar outra. Mas se por acaso abandonarem
uma criança na minha porta, eu não vou dizer não
para o destino que o orixá me deu”.
Franklin assume que Logun Edé é o seu melhor amigo. “Nunca
mais me senti sozinho como costumava me sentir”.
Não sente falta de uma esposa ou de uma família nos padrões
convencionais, mas sente carência em compartilhar momentos. Tem
a consciência que fez uma opção, a de adotar crianças,
e não pode passar essa bagagem para quem quiser viver com ele.
“Não estou à procura, mas se estiver no meu caminho
eu não vou fugir. Ainda não surgiu a oportunidade de um
encontro, mas hei de encontrar, pois ainda sou jovem”.
Espera que os filhos tenham tudo que a vida lhes puder proporcionar.
Tesão de viver ou pelo menos clareza para poder caminhar.
“Tenho boas lembranças do que vivi. Lembranças mórbidas,
mas cresci muito com essa experiência. E percebo nelas o poder
do orixá, quando uma pessoa escolhe o caminho certo”.
Making of
Dia 17 de outubro de 2005, às 15h30. A entrevista foi feita na
casa de Franklin, na sala eu sentada em um sofá e ele em uma
cadeira de balanço de madeira do lado do sofá. Alguns
cachorros passavam por nós sem nos atrapalhar. Thainá,
a filha dele de seis meses, chorou por quase 15 minutos, e ele não
se importou, já sabendo ser manha. A mãe dele, Dona Palmira,
também nos interrompeu discutindo a respeito de religião.
Aprendi muito fazendo este perfil. Sinto que, agora, tenho um domínio
maior sobre narrativa.
Perfil
* Mariana Lisboa (marianafarkuhh@yahoo.com.br),
21 anos, estudante de jornalismo das UniFiamFaam. Amante de livros,
cinema e música.
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