As orações de Don Costa
A vida e mística do padre piemontês que deixou a Itália
para vir ao Brasil anunciar o evangelho por meio dos meios de comunicação
social*
Sentado em um banco em frente ao refeitório de um convento localizado
na zona oeste de São Paulo, um religioso de cabelos brancos e
raros, que deixam a mostra a cabeça clarinha dos nórdicos,
acende um cigarro e liga o rádio à pilha. Sua atenção
não está concentrada no noticiário, mas nos frades
que entram no salão à sua frente para fazer o lanche das
quatro horas. Quando termina de fumar, atravessa o jardim com passos
pequenos, com marcha típica de quem é baixinho e tem pernas
curtas.
Ao caminhar lentamente sobre a grama, para não escorregar, lança
a barriga protuberante para frente. O jeito peculiar de andar deixa-o
parecido com um duende, principalmente quando está com suas vestimentas
favoritas, calças sociais surradas, de um marrom esmaecido, e
camisa pólo verde musgo. Com o olho esquerdo -- não tem
cílios nem enxerga mais com o direito – o padre de 77 anos
espia o relógio. São 17h. Está na hora de assistir
o noticiário na televisão italiana. Ele apressa o passo
em direção à sala de tevê. É sua forma
de manter viva a nostalgia da terra natal.
Dominus vobiscum
A província do Piemonte fica na boca da bota da Europa, a Itália.
Ela separava o país da França e Suíça, mesclando
tradições, línguas e costumes europeus. Na região
de Cúneo, famosa pelos queijos e vinhos, na pequena aldeia de
Canale d’Alba, em 1º de dezembro de 1927, nasceu Lorenzo
Giacomo. De sobrenome Costa, o filho do comerciário Giacomo e
da dona-de-casa Madalena foi o primeiro entre nove rebentos. Veio ao
mundo no dia de Santo Elígio -- ferreiro, ourives, patrono dos
metalúrgicos --, ele foi bispo de Noyon-Tournai em uma época
medieval, quando a França ainda não era França.
O nascimento ocorreu durante inverno rigoroso. Vittorio Emanuele III
era o soberano italiano, mas o poder de fato era exercido por Benito
Mussolini. A Igreja Católica era governada por Pio XI, que viu
o último suspiro do fabuloso poder temporal dos Papas -- as terras
da Santa Sé haviam diminuído a um bairro de Roma, na verdade
o menor Estado do mundo, o Vaticano.
Giacomo trabalhava com afinco numa adega de vinho de Canale para criar
a prole. Naquele tempo, as crianças corriam livres pelos campos
ou pelas ruas. Aos quatro anos, Lorenzo já lia “Il Giornalino”,
prodígio conseguido à base de carinhosas pancadas. Tudo
era certinho na escola pública que seguia os ditames do Dulce.
O lema, credere e obbedire, era inspiração do catolicismo
secular e do regime político fascista que engolira o país.
Junto com seus coleguinhas, o pequeno Lorenzo tinha que aprender a marchar
e bater continência para saudar Mussolini. Uma espécie
de Heil Hitler! à italiana.
_ Viva il Duce!
Uma vez Lorenzo levantou o braço para ir ao banheiro. A resposta
foi o não seco do dedo levantado e balançado como um pêndulo.
Prendeu, prendeu. Era tarde. Tinha mijado nas calças.
_ Mas por que? - a professora perguntou.
Aí Lorenzo deu de ombro, como fazem as crianças quando
respondem às pessoas confusas.
Os rumores de guerra não impediam aquela gente de suas obrigações
religiosas. Dona Madalena ia cedo ao convento. Seu Giacomo ia mais tarde
com Renzo, como ele chamava o primogênito, coroinha que servia
ao altar e respondia as orações em latim.
_ Dominus vobiscum! - dizia o padre.
_ Et cum spiritu tuo! respondia Lorenzo.
_ Ite, missa est! - rezava o padre.
_ Deo gratias!- respondia o coroinha.
Ele gostava daquele universo de penumbra, do idioma estranho, de atmosfera
misteriosa e distante das pessoas. Seu apego à religião
o deixava inquieto. Ele já tinha 12 anos. Poderia decidir sua
vida? Ia à Paróquia Sagrado Coração de Jesus.
_ Sacro cuore di Gesù confido in voi!
_ Sacro cuore di Gesù confido in voi!
_ Sacro cuore di Gesù confido in voi!
O chamado
Nessas idas e vindas da missa, Lorenzo conversou com Monsenhor Sibona.
O pároco da aldeia convidou Lorenzo a morar e estudar em Alba,
a uns 13 quilômetros da aldeia. O adolescente pensou. Deixaria
a família? Os irmãos? Aquele ambiente místico?
Sua mãe? A proteção do pai? Sua imagem? Ele rezava
e implorava uma resposta.
_ Sacro cuore di Gesù confido in voi!
_ Sacro cuore di Gesù confido in voi!
_ Sacro cuore di Gesù confido in voi!
1939, ano que se iniciou a II Grande Guerra. Homo homini lupus! Afinal,
os conflitos estão presentes desde que o mundo é mundo,
desde o fratricídio de Caim contra Abel. Enquanto os homens travavam
guerras externas particulares, o adolescente Stefano Lorenzo lutava
para decidir se devia seguir o desafio de servir a Deus.
Ele aceita o convite do Monsenhor Sibona e vai ao seminário da
Pia Sociedade de São Paulo. Uma ordem de poucos anos, cuja função
na Igreja era trabalhar com os meios de comunicação. Afinal,
a Igreja aos poucos se mobilizava numa reação de tentar
se adaptar aos tempos modernos e os desafios.
Lorenzo ajeitava as malas, era hora de ir. Arrumava o baú, o
espírito, o humor, as esperanças e os entusiasmos de sua
idade. Guardava o medo da incerteza no fundo da bagagem. E foi... Chegava
àquele local imenso, deslumbrante, misterioso. A casa dos paulinos.
Quaerens quem devoret
Eram cerca de três horas da tarde, depois das horas médias,
com seus hinos, salmos e orações próprias dos religiosos.
Pai e filho cruzavam o meandro da porta e liam a inscrição
In Christo et Ecclesia. Sob a imagem de São Paulo, com sua espada
em riste que representa a peleja que se trava entre as nações,
símbolo da luta espiritual entre o bem e o mal, Lorenzo Costa
escolheu o lado que desejava seguir.
No entanto, no exército de Cristo era preciso ser aceito, apto
e eloqüente, sincero e destemido. Logo que chegou ao convento,
alguns moços observavam Lorenzo ao lado do pai e disseram:
_ Este leva até o caixão junto - disse um engraçadinho.
E ele percebeu onde iria entrar, com quem iria conviver. Teve medo?
Quem sabe? A incerteza das relações. A lembrança
da família. Muitos duvidaram dele, alguns deram-lhe um prazo
de desistência.
O estudo era ferrenho. Logo de manhã havia matemática,
francês, ciências, italiano e latim. À tarde era
a vez do trabalho na gráfica da Pia, onde eram publicados livros
sacros, bíblia e orações. Dentre a pequena multidão
de Lorenzos, ele era Costa. compondo os tipos móveis dos artigos
para a impressão.
_ Te Deum laudamus: te Dominum confitemur – rezavam os religiosos
_ Primo core del’Angeli – rezavam os alunos
As súplicas e preces da missa diária eram o momento de
prestar contas a Deus e adorar o Santíssimo Corpo de Cristo.
O ritual era todo em latim e ai de quem respondesse errado! O castigo
era duro. Valia até pontapés, bofetadas e ficar de joelhos,
sem comida. Lorenzo aprendeu a fumar. O pai levava cigarros para ele
durante as visitas. Pai e filho, juntos, papo em dia, apoio da família.
Férias, uma vez por ano. Vinte dias para visitar o lar, voltar
a Canale, rever os irmãos e abraçar a mãe. Na volta
das férias, a retomada do cotidiano, das obrigações,
da gráfica, da escola e das orações.
Ubi solitudinem faciunt, pacem appelant
Passado o tempo dos estudos preparatório, no convento ia-se
para o curso da filosofia. Era a época das crises, dos estudos
profundos, das contradições e ensinamentos dialéticos.
Da cognição e introversão. Estudou-se que Deus
não era ato, mas potência. Que ele se manifesta na transcendência
do universo e na imanência do ser que é o homem. Era tempo
escolher pela vida religiosa de forma concreta e pública.
Costa teria de decidir ir ou não ao noviciado. Seguir e se tornar
membro da Pia Sociedade de São Paulo. Ele decidiu por ser religioso.
Naquele tempo eram os mestres que determinavam quem seria irmão
ou padre. Ser irmão é a consagração nos
votos de castidade, obediência e pobreza. Não poderia celebrar
a missa, nem ter os mesmos estudos de quem fosse destinado ao sacerdócio.
Ser padre é ter incumbência de presidir a assembléia,
realizar casamentos, batismos, confissões, exorcismos e fazer
parte da hierarquia eclesiástica. O critério: saber latim
e ter aptidão ao sacerdócio.
Spiritus tui rore sanctifica
O jovem Costa ingressou no noviciado, queria ser padre, in persona
Christi.
_ Seis meses - disseram alguns professores.
Conseguiu um ano.
_ Mais seis meses, vamos ver – os mestres decidiram.
Costa fez sua primeira profissão religiosa no dia de São
José, em 1946, aos 19 anos. Professou e se entregou a Deus de
corpo e alma. Castidade, obediência, pobreza e fidelidade ao Papa
eram os votos professados. Deveria ser chamado Stefano Costa. Este era
seu novo nome escolhido pelo mestre. Mas antes era o tempo do Beocia.
Ia-se para uma comunidade religiosa, trabalhava um ano para se preparar
para o sacerdócio paulino.
Apresentado ao senhor, o clérigo Costa foi estudar em Roma, junto
à Santa Sé. Ele estava presente, lá na praça
de São Pedro, no Vaticano, em ocasião da proclamação
do Dogma da Assunção de Maria. Era o tempo da teologia.
Da suma teologia. Estudo dos padres, pastores do povo. A preparação
fundamental para receber as sagradas ordens.
Com 27 anos, no inverno de 1954, não havia mas Stefano, muito
menos Costa. Agora era Don Stefano Costa. Neófito agente da fé,
sucessor nos serviços da Igreja, nos atos de caridade, na celebração
da missa. Don Costa gostava do estudo das línguas, travou contato
com o hebraico, grego, francês. Dominava o dialeto piemontese,
o italiano e o latim. O mestre pediu aos superiores para Don Costa estudar
numa faculdade, foi negado. Ele queria. Não foi possível.
Uma meta não alcançada.
Lenire
Mas lá estava o missionário itinerante. Aos 32 anos, em
1959, ouviu a intimação:
_ Irás a Portugal ensinar – disse o superior.
Foi a Portugal. Durante a viagem de trem só ouvia:
_Psi! Psi! – disse a mulher.
As pessoas passavam e diziam:
_Psi! Psi! – falava o senhor.
Mais tarde, quando aprendeu mais uma língua, o português,
compreendeu que o tal psi era um pedido de licença das pessoas
que queriam passar. Para aperfeiçoar-se no idioma assistia televisão.
Começava a ensinar ciências e a trabalhar como chefe da
gráfica. Só podia voltar à Itália de três
em três anos. Foi seis vezes.
Outra proposta:
_ Padre Costa, tenho três países para você ir, o
primeiro é Brasil... – começou o superior.
_ Vou para esse mesmo – respondeu.
Quatro século depois de Colombo, lá estava Dom Costa desbravando
o mar rumo ao novo mundo, a não-Europa. Mais um missionário
seguindo eminentes sacerdotes como Anchieta e Antônio Vieira.
O país o adotou. Ele adotou o país. Recebeu o visto permanente.
Aprendeu bem o português e deu aulas de ciências para os
jovens seminaristas.
_ Porca besta. Decorar é importante – dizia o professor.
Ensinou no método que aprendera: estudar, decorar, responder,
respeitar. Como outrora. Foi chefe da gráfica e, em seguida,
cuidou dos periódicos. Espírito inovador, implantou e
operou o primeiro computador das Edições Paulinas. No
país, morou em São Paulo, Caxias do Sul e São Paulo.
Fez revisões, traduções, desde documentos dos santos
padres da Igreja até documentos do Concílio Vaticano II.
Um intelectual no seu labirinto de livros e pensamentos.
De temperamento casmurro e solitário, Lorenzo continua metódico,
quase um monge. Segue à risca os deveres, os ofícios,
o breviário. Aposentou-se, mas não deixou de fumar. Não
esqueceu a Itália. Faz oito anos que foi. Não irá
mais, acredita que poderia dá muito trabalho aos outros, que
não se acostuma em outros ambientes. Todavia, antenou-se na TV
estatal da Itália, a Rai Internazionale. Ouvindo a Rádio
Vaticana, interessou-se em comprar um computador, navegar nas ondas
da internet, saber das novidades online.
Aos 77 anos, está com as saúde debilitada, mas não
deseja dar trabalho. Nada exigente, não quer importunar. Vive
a tranqüilidade da terceira idade, como no hino Nunc dimittis do
profeta Simeão, que alcançou as promessas do Senhor:
Quia viderunt
Oculi mei
Salutare tuum,
Quod parasti
Ante faciem
Omnium populorum!
Ao cair da tarde, Dom Costa reza as vésperas, as orações
vespertinas:
_ Magnificat anima mea Dominum!
* Perfil realizado pelo seminarista Moisés Viana, aluno do período
diurno da disciplina de Jornalismo Literário ministrada no campus
Morumbi no primeiro semestre de 2004.
|