Jovem talentoso é o idealizador do Meninos do Morumbi
Flávio Pimenta, presidente da Meninos do Morumbi, relata com
orgulho como fundou a ONG em 1996, persistiu mesmo nos piores momentos
e luta hoje por realizar mais sonhos
Meu pai, já falecido, era economista e minha mãe é
fazendeira no interior de São Paulo. Foi um choque para eles
quando falei que queria ser músico, e pior, baterista. Comecei
a estudar música erudita e percussão clássica para
orquestra com dez anos de idade, na Escola Municipal de Música,
onde um dos meus professores era o renomado maestro Sérgio Sá.
Com apenas 12 anos, freqüentava de eventos de música erudita
a shows de rock em clubes. Muitas vezes, quando o Juizado de Menores
aparecia, me escondia atrás da cortina do palco. Mesmo assim,
acabei preso algumas vezes. O órgão na época era
quase uma extensão da família, que levava o menor até
sua sede, no viaduto Maria Paula e, em seguida, informava os pais, que
iam buscar seus filhos no local – que não saíam
de lá sem antes escutar um belo sermão.
Lembro que uma vez usei identidade falsificada do meu amigo Humberto
para tocar à noite. Quando os policiais me pegaram, entreguei
a carteira falsa e o sujeito perguntou: “Você tem 18 anos?”
E falei: tenho claro. O sujeito retrucou: “Mas você está
bem conservado, hein, senhor Flávio!”. Todos caíram
no riso. Não teve jeito, me levaram. Depois de muita conversa
na viatura, me deixaram na porta de casa, onde minha mãe, já
avisada, me esperava de madrugada. Para meu alivio, ela escondeu toda
história do meu pai.
Na mesma época em que estudava na Escola Municipal de Música,
fazia parte de uma banda chamada Movimento Estudantil Revolucionário
da Aclimação, “M.E.R.D.A.”, e nos apresentávamos
nos festivais de escolas e festinhas de bairros. Quando anunciavam a
banda, os apresentadores dos eventos ficavam constrangidos por causa
do nome. Era muito engraçado.
O primeiro disco que gravei profissionalmente foi com a banda paulistana
Joelho de Porco, em 1974. Tinha apenas 15 anos e, como menor de idade
não podia dar meu nome às canções, pedi
para meu pai me emancipar, podendo assim tocar na noite e resolver outras
questões autorais.
Fiz muitas gravações na juventude, principalmente com
os artistas rotulados de bregas. Uma vez o cantor Belchior me chamou
para tocar com ele. Aconteceu de me apresentar com Belchior em Fortaleza
num estádio lotado e, no dia seguinte, tocava com alguns sambistas
desconhecidos no largo São Bento com uma platéia de meia
dúzia de pessoas. Tinha essa postura porque sabia que qualquer
coisa que eu fizesse em música ia me dar experiência, ampliar
a minha rede profissional e render algum dinheiro.
Adquiri algum nome no meio musical. O Adoniran Barbosa e a Aracy de
Almeida eram meus padrinhos. Conheci a Rita Lee na época em que
deixava os Mutantes. Ela tocava com a Lúcia Tamble e fiz alguns
trabalhos com elas. Fquei amigo da Elis Regina por meio do Belchior.
Infelizmente nunca toquei com ela, mas freqüentei sua casa na Serra
da Cantareira. Em 1976 estava na casa da Elis e o Belchior perguntou
para ela:
"Você não tem medo dos militares?” Ela respondeu:
"A única coisa de que tenho medo é de febre de criança".
Elis era forte e sempre falava o que pensava. Ela peitava os políticos
e nunca ficou com medo dos militares -- apenas preocupava-se com seus
filhos, ainda pequenos.
Morei em 1977 no Rio de Janeiro. Tinha 19 anos, tocava com Belchior
e, no ano seguinte, voltei para São Paulo. Na capital paulista,
sofri um acidente de moto e fiquei um ano fora do circuito. Recuperado,
não voltei mais para o Rio. Comecei a tocar em alguns bares de
rock, como “Penicilina Casa Branca", com meus amigos de Sampa.
No final dos anos 1970 o rock era muito evidente na noite paulistana
e tocávamos músicas dos Rolling Stones, Beatles, The Who,
entre outros. Em 1979 toquei com Elba Ramalho, Cláudio Nucci
e Sérgio Sá, meu mestre, no último festival que
a TV Tupi promoveu.
Nesse período conheci minha ex-esposa e minha filha, Alessandra,
nasceu. Eu não via mais a possibilidade de tocar na noite, fiquei
meio parado nessa época, porque após a onda da discoteca
veio a febre da New Wave e não entrei nessa. Só toquei
um tempo com a Gang 90 e gravei o disco Plunct Plact Zum, produzido
por Sérgio Sá.
Nos anos 1980 resolvi dar aulas de bateria. Cheguei a trabalhar em seis
conservatórios ao mesmo tempo e pegava vários ônibus
durante o dia para dar tempo de dar aulas em todos. Como vinha da época
de adolescente cheia de glamour, estava meio perdido. Acabei virando
meio que operário.
Trabalhei na escola AMA, chegando a ter 60 alunos individuais com 45
minutos cada aula. Como dividia os lucros com os donos, escolhi os 30
melhores alunos e comecei a dar aulas em um quartinho nos fundos da
minha casa, no Morumbi. Também voltei a tocar um pouco. Participei
de uma banda chamada Arsenal do Rock, que não chegou a gravar.
Naufragou, apesar das qualidades.
O lance de dar aulas prosperou. Arrumei um sócio e montamos uma
escola de bateria no bairro do Brooklin, em São Paulo. Era a
Drum, na época, em 1987, iniciativa muito bonita e conceituada.
Começamos a namorar as fábricas americanas de instrumentos
musicais, como a Remo e a Zildjian.
O selo Eldorado convidou a banda O Terço, famoso no começo
dos anos 1970, e que eu fui integrante, para gravar um LP. Sérgio
Hinds, detentor da marca da banda, me procurou e gravamos um álbum
com um rock mais progressivo.
Ao mesmo tempo produzia eventos, como o 1º encontro brasileiro
de baterias, realizado em 1988. Foram três dias de eventos no
Sesc Fábrica Pompéia, onde juntou músicos do erudito,
popular e folclórico. Foi um sucesso. Ainda aconteceu o 3º
e último encontro em 1990. Nessa mesma época trouxe para
o Brasil uma franchising do Blue Note de Nova York, abrindo esse nigth
club de jazz e blues. Quando ocorreu o Plano Collor, muita coisa mudou,
e para pior.
Em 1993, por um desentendimento com meu sócio, resolvi fechar
o bar e a escola no Brooklin. Nesse mesmo ano o grupo O Terço
acabou. Estava trabalhando para as fábricas americanas e dando
aula, onde fui um dos primeiros Endorser contratado pela Remo e Ziddjian.
No Brasil era eu, o Robertinho Silva e Téo Lima, que tocava com
o Gil. Eu usava os produtos das fábricas e elas a minha imagem
para dizer que o produto era bom. Era um marketing bem feito, participei
de inúmeras feiras com os marqueteiros pelo Brasil todo. Abri
uma confecção com um dos meus alunos e, com autorização
dessas empresas, fazíamos camisetas e vendíamos para as
lojas de instrumentos musicais. Havia camisetas da Fender, da Remo,
Zildjian, Maxtone e outras marcas menores. Chegamos a vender 70 mil
camisetas por mês, ganhei muito dinheiro.
Em 1996 recebi um convite da Remo e da Zildjan para me exibir na maior
feira anual e mundial de lançamento de instrumentos musicais,
a NAMM, no Texas. Animado, havia me programado para vender minha casa
e morar nos EUA em julho.
O problema é que, em março do mesmo ano, com poucos alunos,
comecei a conhecer informalmente, pelas ruas do Morumbi, alguns adolescentes
e jovens da favela de Paraisópolis. Convidei meia dúzia
para ensinar música e jogar futebol comigo e alguns amigos, em
uma quadra próxima à minha residência.
No começo tocávamos de uma forma lúdica, relaxada,
depois, fomos para a rua. Minha casa ficou pequena. O batuque aumentou
e começou a ajudar os moleques com algumas questões básicas,
como a alimentação e roupas. Todo mundo acabava ajudando,
era uma coisa puramente assistencialista. Um dos meus alunos e depois
conselheiro, Luis Henrique (já falecido), e seu pai o senhor
Gino da FOS (Fundo de Obras Sociais), me aconselharam e me ajudaram
a montar uma associação formal sem fins lucrativos. Abortei
totalmente a idéia de ir para os Estados Unidos, pois estava
totalmente envolvido com a meninada e com a causa da construção
dessa entidade. Achei aí um canto para fazer algo que eu precisava,
alguma coisa nova que me despertasse. Me agarrei e fiz disso um projeto
de vida.
No começo fazíamos alguns shows e aos poucos fomos crescendo
até nos tornarmos pessoa jurídica formal. Em 1997, viramos
uma ONG (Organização Não Governamental). Comecei
a descobrir então que a minha música era uma ferramenta
poderosa para atrair essas crianças. Falando de igual para igual
com eles e fazendo com que visualizassem o lado positivo e saudável
da vida. Crescemos e fomos para um prédio maior onde estamos
até hoje, e com muita garra e persistência, de todos, começamos
os Meninos do Morumbi.
O projeto é premiado dentro e fora do país. Ganhamos prêmios
da Câmara de Comércio Americana, da Unicef, como projeto
modelo pela Unesco, Ministério da Cultura, Liga das Senhoras
Judias, Rotary, e com a HP o prêmio de inclusão digital,
e muitos outros.
Nossa parceria com as empresas iniciou-se com a FOS e o Grupo Pão
de Açúcar, em seguida com o Projeto Travessia do BANKBOSTON,
que trabalha com as crianças de rua do centro da cidade, que
aprenderam música com a gente, e agora somos financiados por
outros grandes parceiros.
Desde 2000 nossa banda faz shows na Inglaterra e na França. Conseguindo
financiadores, reconhecimento e respeito nesses países, somos
uma vitrine da cultura brasileira no exterior. Os embaixadores do que
há de mais bonito na dança, no canto, na alegria de viver
da juventude, que são as maiores vítimas de exclusão
social.
Por toda estrutura e qualidade musical, os visitantes acabam sentindo
um astral diferente, uma energia altamente transformadora. A pessoa
aqui dentro se sente totalmente emocionada, renovada e abençoada
quando assiste um ensaio dos garotos.
Hoje acredito que não parei a vida para ajudar coitadinho. Eu
tinha um projeto de vida, sou pai, gosto de tocar, e peguei o meu projeto
de vida e coloquei todo mundo dentro, acho que foi isso que aconteceu.
A música e as crianças são as minhas grandes paixões.
O ideal é mega porque eu não paro de receber e dar oportunidade
para novos integrantes. Claro que a gente vive dificuldades, como agora,
por exemplo, mas eles não sofrem com isso. E uma causa que se
tornou muito maior do que jamais poderíamos supor.
Localização
Rua José Jannarelli, 485- Morumbi- São Paulo. Tel.: (11)
3722-1664
www.meninosdomorumbi.org.br
* Perfil realizado por Alexandre Di Fonzo, Luciana Magalhães
e Paulo Spinola, alunos do período noturno da disciplina de Jornalismo
Literário ministrada no campus Morumbi no primeiro semestre de
2005.
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