Gegê do Bexiga
Homossexual assumido, Gegê do Bexiga conta seus amores e suas
desventuras sem remorsos nem tristezas, mas sem perder a esperança.
Acredita no ser humano e na sua essência e torce para que um dia
todos vivam em harmonia
Em 20 de Março de 1940, Heinrich Himmler, chefe da Gestapo,
ordena a construção do campo de concentração
de Auschwitz. Enquanto isso, o Brasil vivia sob o regime do Estado Novo,
comandado por Getúlio Vargas. Nesse clima político dominante
nasce o anônimo Rubens Costa, mais precisamente em Porto Alegre.
Hoje tem 65 anos, mede 1,70m, possui “corpo saudável, pele
que faz inveja a muitas meninas” e olhos azuis brilhantes. Filho
de um general da Marinha e de uma espanhola de sangue caliente, a vida
do pequeno Rubens não foi nada fácil. Ele conta que sofreu
muito, pois a mãe era muito geniosa.
“Ela era uma mulher muito má, me batia muito. Já
meu pai era muito apegado a mim e ao meu irmão, porém,
por circunstâncias da profissão, não parava em casa”.
Apesar de ser um militar rígido, adepto da moral e dos bons costumes,
o general tinha o apreço das crianças. Isto marcou muito
a infância de Rubens: “O meu pai me aceitava como eu era,
mesmo porque desde que eu me conheço por gente sou homossexual”.
Além de militar, o pai era também um grande fazendeiro,
tinha plantação de café, de milho e entre seus
funcionários havia um tratorista chamado Tiago, que despertou
muito a atenção do rebento, que na época tinha
apenas nove anos.
“Era apaixonado por ele. Sempre que podia, o acompanhava pelo
meio do mato. Lá no meio da lavoura, a gente trocava carícias.
Éramos muito apegados. Mas éramos crianças, ele
tinha só 20 anos”.
Esse romance precoce não demora muito a acabar. O general adoece
e logo vem a falecer. Alguns meses depois, a mãe manda os filhos
para um colégio interno, o Dom Bosco de Porto Alegre, e casa-se
com um membro da família Schnaider, muito rica e tradicional
de Joinville.
Se o relacionamento com a mãe já era difícil antes
do internato, passou a ficar insustentável: “minha mãe
batia muito em mim, então resolvi fugir do colégio”.
A primeira fuga não foi bem sucedida. Somente na terceira tentativa,
já com 14 anos, Rubens foge com o circo Munique, que na época
estava de passagem pela cidade, mais precisamente em Canoas.
“Era uma família de ciganos que me queria muito bem. Logo
me aceitaram, eles me tratavam como a um filho, estavam de partida e
eu fui junto”.
Com o Munique, viaja pelo Uruguai, Argentina, Chile, Peru, Bolívia,
“praticamente à América Latina toda”. “Neste
circo fui de tudo. Palhaço, locutor, bilheteiro e ainda encenava
dramas e comédias. Naquela época não tinha tantos
animais como os atuais, éramos mambembes”, conta.
Aos 16 anos, decide largar o circo, pois a trupe estava de partida para
a Espanha. “Tinha medo de ir para a Europa e também estava
apaixonado pelo domador de leões, mas não podia assumir
este relacionamento. Nós estávamos no Chile e então
decidi vir sozinho para o Rio de Janeiro”.
O regresso para o Brasil não foi fácil. Precisou contar
com a ajuda de um estranho, que fingiu ser um parente próximo.
Foi assim, na companhia de um maior fingindo ser seu tio, que ele chega
ao Rio de Janeiro.
Mal sabia que este retorno seria sua cruz. “Não conhecia
ninguém, fui morar na rua, sofri muito, tinha medo das pessoas,
passei até fome”.
“Na Praça Paris as madames costumavam jogar pão
seco para os pombos e eu, faminto, catava os pães, molhava no
mar e comia”.
Mas a sorte deste porto-alegrense iria mudar. Numa das noites em que
dormia ao relento, foi abordado por um estranho, que o convidou para
dormir em um albergue noturno. “Era um lugar muito chique, parecia
um hotel”. Depois disso, foi indicado por uma assistente social
para trabalhar na Prefeitura. “Eu era muito jovem, não
tinha cabeça, sai da Prefeitura e fui trabalhar de faxineiro
na Rádio Nacional”.
Nesta época conhece sua nova paixão, um advogado, o doutor
Nélio Farias. “Ele gostava muito de mim e logo me convidou
para morarmos juntos. Era um apartamento muito chique, que ficava na
Marquês de Pombal e tinha vista para o relógio da Central
do Brasil. Ele era o que a gente costuma chamar de maricona, já
era um senhor”.
Para viver este novo amor, Rubens larga o trabalho na Rádio Nacional
e dedica-se exclusivamente ao namorado. Porém esta calmaria duraria
muito pouco, e o destino mais uma vez bate à sua porta.
“Eu estava levando uma vida de rico. Fiquei com ele dois anos,
depois faleceu um parente dele, aí ele não queria mais
me assumir. Perdi a bocada, como dizem por aí”.
Sem trabalho e novamente sem teto, resolve ir para São Paulo.
“Na época a cidade era muito famosa, todo mundo falava
dela, era São Paulo daqui, São Paulo dali, então
eu queria conhecer também”.
Como todo mundo que chega à cidade, logo percebeu que a vida
por aqui não seria nada fácil. Ao invés de chorar,
decidiu que aqui seria feliz.
Sob o relento não dormiria novamente. Invadiu um terreno baldio
na rua Treze de Maio, no bairro do Bexiga, e foi em busca de um emprego.
“Em São Paulo fui trabalhar de cozinheiro de pensão,
fiquei lá uns quatro anos. A pensão pertencia à
Dona Dóris Bocamino, uma italiana que me queria muito bem. Eu
era o preferido dela, tanto que eu era o único que ela deixava
pentear as filhas dela, vesti-las e depois colocá-las no táxi
para irem ao colégio”.
Nessa época o país pegava fogo com a renúncia do
Presidente Jânio Quadros, em 1961, justificando que “fi-lo
porque qui-lo”.
Rubens conta “que foi uma época muito difícil, nós
homossexuais éramos presos quase todos os dias. Os policiais
alegavam vadiagem, quem não tinha carteira assinada ou não
tinha documento era levado para a delegacia. Inclusive tinha um delegado,
o Machadinho, que tirava um dia da semana somente para prender gays
e prostitutas. A delegacia dele era chamada de ‘Vaselina’”.
No período militar a dona da pensão foi embora para a
Itália, e Rubens arranja emprego na maior casa de espetáculos
de São Paulo, O Beco, por onde passara inúmeros artistas
como a cantora Elis Regina.
A casa de espetáculo foi destruída por um incêndio
e ele fica mais uma vez desempregado. A convite de um amigo, foi trabalhar
em um restaurante chinês, que por ironia do destino logo encerra
as atividades. O amigo foi para China, pois falava fluentemente chinês,
e ele foi para a rua.
Conseguiu um emprego na Boate Oba-Oba, do Sargentelli. “Lá
eu fazia de tudo, limpava o chão e, se faltasse coreógrafo,
ensaiava os passos com as mulatas. Aí a casa fechou e eu fui
para o Plataforma. Lá os shows eram muito mais bonitos, só
entrava estrangeiro, era show para inglês ver”.
Sua vida passa por um período de calmaria, mas ainda sofre com
a perseguição policial. “Quem não tivesse
registro profissional era preso, tinha que assinar um papel se comprometendo
a arranjar um emprego e eu nunca tive carteira assinada”.
Neste meio tempo conseguiu juntar um dinheiro e construir um barraco
no terreno que havia invadido, no Bexiga, e de quebra encontrou um novo
amor.
“Teve um carnaval em que eu saí de cigana, na tradicional
Banda do Candinho. Foi quando encontrei um peruano, o grande amor da
minha vida. Ficamos juntos por nove anos. Eu lembro que vi um garotão
bonito com uma mochila nas costas, a gente se entreolhou, eu gostei
dele e logo o convidei para morar comigo. Ele disse que tinha saído
de casa e não tinha mesmo onde ficar. Um dia ele voltou à
Bolívia, pois um de seus parentes havia morrido. Como demorou
muito, arranjei logo outro, um argentino bonitão, você
precisa ver. Foi quando o boliviano me escreveu, dizendo que ia voltar,
mas aí eu não queria mais”.
Rubens conta que desde então não teve mais nenhum relacionamento
sério e principalmente que não moraria mais com outro
homem.
Quando questionado sobre o sentimento de solidão, ele diz: “Nesse
mundo ninguém é jogado, uns gostam dos olhos e outros
da remela”. Aproveita para mostrar um álbum em que constam
fotos de todos seus ex-namorados, em sua maioria rapazes muito bonitos,
que fariam qualquer garota adolescente suspirar. “Minha amiga
fala que nem ela que é mulher consegue tanto homem bonito”
se vangloria Rubens.
Mas a beleza pode trazer problemas. “Outro dia passou aqui na
porta um rapazinho dentro de um carro azul. Ele me olhou, dei um sorriso
e ele parou o carro mais adiante, desceu e veio conversar comigo. Era
um garoto muito bonito, muito educado, saradão e no meio da conversa
pediu para usar o banheiro. Na saída, me pegou pelo pescoço
e encostou uma arma na minha cabeça e disse para eu não
ficar com medo. Ele me disse:’você é um gay de classe,
se fosse outro já estaria estirado no chão’, então
me pediu R$ 50 para cheirar uma carreira de cocaína e eu dei.
Imagina se eu não tivesse o dinheiro, hoje estaria morto”.
O jovem que o ameaçou era o estudante de direito Gustavo de Macedo
Pereira Napolitano, de 22 anos, que uma semana depois matou a avó
e a empregada doméstica a facadas, quando estava sob efeito de
drogas. Dias mais tarde foi capturado pela polícia.
Rubens conta que ficou estarrecido quando viu o caso na televisão
e completa: “Hoje em dia não se pode confiar em ninguém.
Antes você dormia com alguém por amor, hoje pode estar
dormindo com a morte. E não falo somente desse caso, falo também
das doenças que existem por aí, como a Aids, por exemplo”.
Entretanto o episódio não endureceu seu coração.
Conta que possui um namoradinho que o visita nos finais de semana. ”Eu
não faço sexo há 15 anos, com meus parceiros só
brinco”.
Apesar das intempéries, ele leva uma vida bem saudável.
Confessa que nunca fumou, não gosta de álcool e acorda
todos os dias às seis da manhã, “mesmo nos dias
frios”.
A sua casa deixou de ser um barraco há 15 anos, conseguiu construí-la
em alvenaria no mesmo terreno. Conta que o terreno não é
seu, pertence à Prefeitura, existindo apenas um acordo tácito
de usufruto do terreno.
O seu lar, hoje, já é conhecido no Brasil e no exterior,
pois foi fotografado pela artista plástica gaucha Rochelle Costi,
cujas fotos estiveram expostas na Bienal de 1998 e já figuraram
nas páginas da revista S/Nº, periódico semestral
pertencente ao fotógrafo Bob Wolfenson.
Nunca mais teve contato com a família e também não
deseja receber notícias. Amigos, acredita que não tem
nenhum, não acredita em amigos. Sua renda vem do aluguel de dois
quartos em sua casa, além dos trocados que ganha guardando os
carros de clientes que freqüentam as cantinas da Rua Treze de Maio.
Pergunto se tem algum arrependimento desta vida, me diz que não.
Gosta muito da vida que tem, dos desafios que enfrentou e mantém
a casa aberta à todos que queiram visitá-lo, “Deus
me deu saúde para eu não desistir nunca e sempre fazer
o bem”.
Aos domingos há uma feira de antiguidades em frente a sua casa,
no bairro da Bela Vista. Ele então aproveita para fazer o que
mais gosta: ouvir música em sua vitrola, orgulha-se da coleção
que possuí. “Tenho vinil de um monte de artistas, tem o
Cauby Peixoto, a Ângela Maria, o Nelson Gonçalves, tenho
também rock, charleston, twist, tenho de tudo. Às vezes
as pessoas vêm aqui me pedir algum tipo de música, se eu
tiver coloco na hora”.
Rubens, jura viver muito bem e não trocar São Paulo por
nenhum lugar do mundo.
Comento com o Gegê do Bexiga, como é conhecido, que sua
vida foi bem agitada e ele me responde, com uma boa gargalhada: “Mais
eu ainda nem te contei nada”.
É bem possível que não tenhamos sabido muito a
seu respeito. É certo que retornaremos, afinal a história
ignora muitos personagens menores, mas são os anônimos
que têm as melhores versões dos fatos.
* Perfil realizado pelos seguintes alunos do período noturno
da disciplina de Jornalismo Literário ministrada no campus Morumbi
no primeiro semestre de 2005:
• Érika Carvalho (erimcla@ig.com.br) é executiva
de contas de uma agência de comunicação. Divide
o tempo entre o trabalho e a maternidade. Sob o signo de libra é
romântica e apaixonada. Mas também é muito abusada,
seu mal humor é curado com black music e tequila. Já fez
de economia a decoração de interiores. Descobre novidades
como ninguém. Dentre os inúmeros sonhos, um deles é
escrever o livro sobre a paulicéia desvairada e sua histórias
anônimas. Onde vais estar daqui a cinco anos? Vai estar linda
no sofá da sala, esperando que seu príncipe volte do passeio
com as crianças, afinal, ela não é obrigada.
• Vander Lins (hapanui@yahoo.com.br) é bem eclético.
Ataca em todas as frentes, mas quando está de mal humor é
melhor não estar por perto, vocifera como um trovão. Seu
maior tesouro são os amigos, dos quais possui profundo apreço
e tem ciúmes. Intempestivo, gosta mesmo é de dar risadas,
não dispensa uma piada e nem uma boa balada. Ele não nasceu,
estreou, e se considera uma pré-celebridade, ou seja, um famoso
em processo de formação. É pisciano.
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