Memórias de dona Gabriela

Confira a história da simpática nutricionista de quase 80 anos que foi uma das pioneiras da Santa Casa de Santo Amaro

Com educação bastante rígida, característica do século passado, Gabriela nunca foi de sair muito. Passou a infância com suas duas irmãs e os pais no bairro nobre da Aclimação, zona central da cidade de São Paulo, onde mora até hoje. As meninas costumavam brincar na frente de casa e de vez em quando iam ao cinema que ficava no final da rua, que atualmente funciona uma Igreja evangélica. “Quando meu pai saía para jogar bola no domingo, a gente corria pra ver um filme e voltava rapidinho”. Apesar de ter estudado só até a 4ª série do primeiro grau, Gabriela era muito inteligente e aprendeu facilmente, aos 11 anos, a costurar. Fazia vestidos de boneca, com lantejoulas e purpurina, e alguns anos mais tarde já modelava belos vestidos de casamento.
Aos 17 anos, dona Gabriela fez um curso técnico de nutrição na Santa Casa de Santo Amaro, durante uma época em que estava morando com sua irmã na Vila das Belezas. Depois de formada, trabalhou cuidando da dieta dos doentes no hospital. A cozinha, de porte industrial, tinha um fogão grande que funcionava a gás. Os alimentos eram mantidos numa dispensa, reduto onde aconteciam os comentários mais picantes entre freiras e funcionárias.
A convivência entre as garotas que trabalhavam na Santa Casa, a maioria jovens de 20 anos, não era boa o tempo todo. Como é comum no ambiente profissional, muitas faziam de tudo para ocupar cargos de chefia. Yuki, uma de suas melhores amigas, nem sempre quis o seu bem e muito fez para tirar Gabriela do setor da nutrição do hospital. “Ela dizia que eu não fazia nada e armou muitas situações para eu ser mandada embora”.
Em uma destas ocasiões, Yuki pediu que ela costurasse umas toucas de pano para as funcionárias da cozinha. Gabriela, prestativa, não perdeu tempo e, na mesma tarde, depois de trabalhar durante toda a manhã, começou a bordar as toucas brancas com o símbolo da Santa Casa. “Ela disse para que quando eu fosse embora, trancasse o armário com os panos e as linhas que estava usando e não esquecesse também de fechar a porta”.
Gabriela saiu da sala onde costurava e foi procurar alguém que pudesse estar com as chaves, já que Yuki havia esquecido de deixá-las com ela. Quando voltou à salinha onde costurava, que ficava num corredor, próximo à cozinha, estava Yuki. A chefe da cozinha abriu o armário e, gritando com Gabriela, jogou todas as toucas no chão, os panos brancos, linhas e agulhas, alegando que ela não tinha seguido suas instruções de guardar o material. “Ela disse que eu tinha sido irresponsável”. Mas não foi dessa vez que conseguiram fazer com que ela desistisse do trabalho que gostava tanto.
Naquela época, por volta da década de 40, a peteca era a última moda e todo mundo passava horas nos parques da cidade jogando. Numa tarde, no parque da Aclimação, Gabriela passeava com suas irmãs e notaram um grupo de garotos jogando praticando o esporte. Não hesitaram em entrar na roda. Quando Gabriela percebeu, já estava apaixonada por Arlindo, seu primeiro marido. O namoro não foi muito fácil, os costumes da época não permitiam que fosse “a festa que é hoje”. Os casais tinham que ficar na sala, na frente dos pais, e para isso ainda precisava pedir permissão.
O tempo passou e dona Gabriela, agora viúva, conheceu por meio de uma amiga da Santa Casa Tarcísio, que seria seu segundo marido. “Ela falou pro tio dela que nunca tinha me visto com homem nenhum”. Encantado com a pureza e ingenuidade de Gabriela, Tarcísio foi logo dando indiretas de que queria casar. “Eu perguntei: como casar se a gente nem se conhece?”. Não adiantou muito. Conheceram-se em outubro e dois meses depois já estavam morando juntos. Ficaram casados por dez anos, quando além de educar seus dois filhos do primeiro casamento, cuidou também de um dos filhos que Tarcísio já tinha. Tarcisinho até hoje a chama de mãe.
Dona Gabriela ficou viúva mais uma vez. Tarcísio, de uma hora pra outra, começou a sofrer do coração. Antes de morrer, ele pediu para que o marido de uma das filhas de seu primeiro casamento, que trabalhava num cartório, escrevesse uma carta-testamento organizando a divisão da casa entre todos da família. Os outros filhos de Tarcísio, com exceção de Tarcisinho, não mantinham boas relações com Gabriela. “O filho mais velho chegou a dizer que não ia me dar parte nenhuma da casa.” Como ele morreu antes de assinar a carta, ela acabou ficando sem herança.
Gabriela voltou a morar com a irmã na Vila das Belezas, onde ficou até ela falecer. Depois retornou para a casa que era de seus pais e cuidou da irmã mais velha, que tinha câncer e faleceu anos depois. Por esses acontecimentos e por ter ficado viúva duas vezes, de uns anos pra cá, Dona Gabriela tem sofrido de um mal que insiste em não ir embora: a depressão. Há dez anos, encontrou na igreja evangélica uma força maior para superar suas crises, e tem vivido dia após dia com a ajuda da religião que a ampara, num momento em que ainda não conseguiu se livrar da doença.

* Perfil realizado por alunas do período noturno da disciplina de Jornalismo Literário ministrada no campus Morumbi no primeiro semestre de 2005. Clarice de Souza Dias Cará, 26 anos (cla.cara@uol.com.br), futura jornalista, atualmente trabalha na TV Cultura. Amanda de Paula (amanda_dpa@yahoo.com.br), 21 anos, que também vai se formar em jornalismo, trabalha na assessoria de imprensa da Federação dos Químicos.