O amor redentor
Dedicada à família, a aposentada paulista Stani ajudou
os dois irmãos, a mãe e o pai a enfrentar seus problemas
de saúde. Hoje, ela se dedica a cuidar do esposo, que luta contra
o câncer
Ricardo Arcon*
Stanislava Josephina Maria foi uma espécie de Madre de Calcutá
do lar. Enterrou o pai, o velho Oscar, os irmãos Nenê e
Oscar Filho, e a mãe, Pepa. O pai foi acometido por um câncer
no intestino. Gostava de uma cachaça e não a abandonou
nem mesmo durante o tratamento. Nenê, a ovelha negra da família,
era dono de um coração gigante, mas o alcoolismo, que
o acompanhou dos 20 e poucos anos até a morte.
Já o irmão mais velho, Oscar Filho, o Oca, odiava pinga.
Em compensação, matava meia garrafa de uísque por
noite. Vivia trancado no quarto, bebendo, lendo e fumando seus cigarros
da marca Hollywood. Faleceu por causa de um câncer no pulmão.
Ao redor dos 80 anos, Pepa foi atropelada e ficou senil.
Stani sempre esteve ao lado de todos, fazendo o papel de filha, irmã
e enfermeira. Para cuidar da família, teve de abandonar a própria
vida. Desde a juventude, não namorava. Seu único hobby
era o trabalho.
Era em sua sala na Editora Abril que ela esquecia dos problemas. Deixava
de lado aquele mundo louco que encontrava naquela casa térrea
na Rua Guarujá, no bairro de Mirandópolis, na zona sul
de São Paulo. Durante os 35 anos de empresa, Stani foi funcionária
exemplar, exercendo com competência o cargo de secretária-executiva.
Lá, ninguém sabia de suas dificuldades com seus pais e
irmãos. Fazia questão de não misturar as bolas.
Até porque queria passar um ar de quem estava sempre bem com
a vida. “Os patrões gostam de gente assim”, justifica.
Durante 20 anos, Stani sofreu muito em casa. Principalmente, por causa
de seu irmão Nenê, o caçula. Depois que o patriarca
Oscar faleceu, em 1979, ela se sentiu na obrigação de
cuidar dele. “Sempre tive estabilidade no trabalho, não
tinha vícios e parecia inabalável. Construí uma
imagem de durona”, explica.
Certa vez, Nenê chegou a bater na irmã. Tinha chegado do
bar muito bêbado e ela começou a lhe passar um pito. As
muitas cachaças na cabeça fizeram com que ele perdesse
a estribeira, acertando-lhe um chute na barriga. A senhora de 68 anos
conta com a voz embargada as histórias protagonizadas por Nenê.
Parece que ainda hoje, após 15 anos de sua morte, continua a
sofrer com tudo aquilo que passou.
Mulher alta e de olhos verdes, Stani abre a gaveta do armário
do quarto e apanha um texto de sua autoria. “Foi escrito há
anos, veja como o papel está amarelado”, diz. É
uma crônica sobre o dia em que Nenê, literalmente, virou
bicho. Ela se recusa a me mostrar o documento. Prefere ler o seu conteúdo
em voz alta. Eu vou anotando tudo que poço. No final, ela desaba
em lágrimas.
Nenê começou a pirar repentinamente. Passou a ver ratos
na parede e a sentir um frio paralisante na espinha. Endoidou mais ainda
ao ver uma gangue de malfeitores invadir seu quarto. Foi então
que decidiu bater em retirada. Jogou para longe os três cobertores
que lhe aqueciam o corpo e desencanou de calçar o tênis
para proteger os pés durante a fuga. Já correndo com o
semblante notadamente apavorado, cruzou o corredor como um leopardo
faminto atrás de uma presa apetitosa. Entrou no quarto de sua
irmã, Stani, e avistou o muro que lhe pareceu a salvação.
Num pulo só, ganhou a casa de dona Almira, que cozinhava calmamente
feijão branco com lingüiças picantes, sua especialidade.
Ao olhar pela janela aquela cena quase inexplicável, a senhora
de cabelos brancos como a neve não teve dúvida. Encheu
o peito e disparou o brado retumbante: “Socorro. Socorro. Um ladrão.
Socorro”. Seu coração se pôs a bater a mil
e parecia caminhar para o colapso, tamanho o susto que tomara. Numa
fração de segundo, sua visão ganhou lucidez, e
o medo transformou-se num misto de indignação e piedade.
Viu que o suposto ladrão era, na verdade, o filho de Pepa, sua
vizinha há mais de 40 anos.
Com a voz embargada e uma interrogação sobre a cabeça,
Almira tentou contê-lo com palavras: “Calma, meu filho,
o que está acontecendo?”. A pergunta ecoou numa viagem
sem resposta. Nenê, em sã consciência, nunca iria
ignorar a velhinha mais doce que jamais conhecera; que tanto o levou
para brincar nos momentos em que sua mãe esteve ausente. No entanto,
a crise de abstinência que o acometia era capaz de apagar da memória
suas lembranças mais fraternais. Continuou a pôr a pique
seu próprio corpo, que suava em pleno inverno como se estivesse
sob o sol de verão.
Nenê olhava para trás a cada trançar de pernas.
Pareceu-lhe que o bando se aproximava implacavelmente. Sentiu-se próximo
de perder a vida e não titubeou ao deixar mais um muro para trás.
Petrificada, dona Almira assistiu à ação delirante
e teve dó do pobre sujeito. O salto da vez não gozou do
mesmo sucesso do primeiro. Nenê caiu sobre um galho quebrado que
dilacerou seu pé esquerdo, deixando uma marca de sangue na roupa
estendida no varal. A necessidade de se manter a salvo não deu
margem para que sentisse dor. Continuou a correr como se nada tivesse
acontecido e, numa espécie de performance olímpica, varou
o terceiro muro da tarde.
Só que, desta vez, encontrou sob os pés algo pior que
um galho inanimado. Uma boca nervosa lotada de dentes afiados mordeu
sua canela fina. Pressentindo a chegada do estranho, Tor – um
capa-preta de poucos amigos – preparou o bote certeiro. Eis que
surgiu uma voz rouca e aflita. “Tor, largue. Amigo, amigo”.
O pastor belga murchou ao ouvir a ordem do dono. Nenê derrubou
lágrimas dos olhos e colocou de imediato a mão na ferida
que conservava a marca da arcada canina. Sentir dor era sinal de que
o deliriuns tremens caminhava para o final. “Nenê, sou eu,
o velho Chico”.
De nada adiantaram as palavras de carinho. Sangrando hemorragicamente,
Nenê esmurrou a primeira porta que viu pela frente. Na cozinha,
fitou uma faca e armou-se para o ilusório combate fratricida.
“Para longe. Sumam daqui. Não tenho nada para vocês.
Vou matá-los”. Logo que percebeu o desatino do irmão,
Stani correu para a rua. A aflição já refletia
em suas pernas, que tremiam ininterruptamente.
Almira logo apareceu e foi contando tudo o que havia acontecido. As
duas correram para a casa de Chico. Por sorte, encontraram a porta aberta
e seguiram rumo ao quintal. Nenê esfaqueava o nada. “Pare.
Você está delirando. Não tem ninguém aqui”,
disse Stani. A ficha caiu e ele a atendeu de pronto. Soltou a faca e
as feras que o acompanhavam durante aqueles eternos minutos. Os dois
começaram a chorar. Um abraço forte os uniu e foi encoberto
pelos braços de Almira, que compartilhou o momento como se fizesse
parte da família. Sob os três, uma possa de sangue gigante
se formou. Correram para o hospital. Depois de 38 pontos na canela e
mais 13 no pé esquerdo, Nenê sabia que sua tarde havia
sido infernal.
“Esse é o retrato do que foi minha vida durante mais
de duas décadas. O pior é que tive de enterrá-lo
quando ele tinha menos de 40 anos”, lembra. Nenê morreu
jovem, vítima de cirrose, após ter usado todo o tipo de
droga, ter dado perda total em seis carros, ter tomado facada etc.
O sofrimento com ele acabou, mas logo depois, num intervalo de dois
anos, Pepa foi atropelada e começou a ter dificuldades de locomoção.
Passaram-se alguns meses, e a mãe de Stani começou a sentir-se
só e inútil dentro de casa. “Esse quadro a transformou
num ser amargo comigo”, diz. Várias vezes elas brigaram
feio. De não se falarem por dias ou semanas. Mas existia um carinho
enorme entre elas.
Aliás, todos ali se gostavam. Stani também demonstrou
um carinho enorme com seu irmão Oscar. De 1997 a 2000, cuidou
dele como um filho. Ela perdeu a conta de quantas noites passou às
claras, de quantas vezes o levou ao médico.
Oscar morreu nos braços dela. Lembro como se fosse hoje, ele
foi me falando alguma coisa que não dava para entender, e seus
olhos foram se fechando”. Ele morreu dois anos antes de Pepa.
Stani conta triste que conviver com uma mãe que enterrou dois
filhos foi uma tremenda barra.
Depois da morte de Pepa, Stani viu sua vida virar de pernas para o ar.
Não tinha mais problemas, mas também não tinha
mais família. Só restava seu irmão Barão,
que trabalhava como administrador de imóveis e vivia no mesmo
bairro com os filhos e a mulher.
Carne e unha
Numa festa de uma prima, em junho de 2000, Stani encontrou um amigo
de longa data. Vladimir, na época, com 65 anos, estava solteiro.
Tinha se divorciado há mais de 15 anos. Os dois encontram afinidades
num bate-papo de menos de 20 minutos. Conversaram sobre filmes e teatro.
Vladimir, um esloveno, logo a convidou para um jantar. Ela recusou.
Não namorava desde a juventude, mal sabia aceitar um convite
desses. O senhor de cabelos brancos insistiu e consegui pegar seu telefone.
Ligou três dias depois do reencontro. Após várias
conversas, Stani topou encontrar-se com “Vlad”.
Um piano bar num hotel nos Jardins foi eleito para aquela noite. Um
vinho tinto argentino acompanhava a melodia. Papo daqui e de lá,
e eles sentiam-se envolvidos um pelo outro. “Mas depois daquilo,
saímos umas dez vezes até que ele pegasse em minha mão.
Para arrancar-me um beijo, então, foram meses”, conta.
O fato é aquela noite fria desencadeou uma grande paixão.
Meses depois, havia uma sintonia perfeita entre os dois. Tanto que eles
se casaram em outubro de 2004. Stani havia encontrado um amor que lhe
trouxe novamente alegria. Eles vivem maravilhosamente apaixonados. “Somos
carne e unha”, diz ela. Geni, uma amiga do casal, pondera: “Stani
mereceu. Viveu durante anos apenas para cuidar dos outros. Agora tem
um marido que lhe dá atenção”.
Uma tarde de outubro de 2001 parecia igual a tantas outras. Vlad passaria
por um exame de rotina. Foi ao médico e saiu de lá preocupado.
O doutor Alencar havia reclamado que há tempos seu paciente não
o procurava. Despediram-se com um abraço e Vladimir foi avisado
que seu exame ficaria pronto em alguns dias.
Stani foi buscar o resultado. O médico, cheio de dedos, logo
abriu o jogo. Seu parceiro estava com câncer na próstrata,
cujo tamanho ainda não era possível mensurar. Teria de
ser feita uma cirurgia para retirar o tumor e fazer um diagnóstico
mais preciso. “Espero que não haja metástase”,
disse o doutor.
Havia. Várias consultas e muitas operações depois,
Vlad continua a lutar contra a doença. O câncer já
lhe invadiu o pulmão e o intestino. A chance de cura é
remota. Stani continua fazendo o papel de cuidar dos outros. Parece
seu karma. Ela vive bem mesmo sabendo que os dias de seu companheiro
estão praticamente contados. No entanto, os dois vivem uma imensa
paixão. Saem para dançar, vão a restaurantes, trocam
gestos de carinho na sala de quimioterapia. “O amor é assim,
redentor. Não me arrependo de nada. Vivi intensamente a alegria
e a tristeza”, diz emocionada. A entrevista acaba quando Vladimir
a chama na sala. Pede para que ela o ajude a trocar de posição.
Está sentindo dores e já não pode se virar sozinho.
* Ricardo Arcon, 25, (ricardoarcon@terra.com.br)
trabalha como repórter na rádio Jovem Pan, de São
Paulo. Gosta de política, literatura e uma eventual cervejinha
para descontrair o ritmo do trabalho e estudos.
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