A vida como performance
Material disponibilizado no site da editora Companhia das Letras (www.companhiadasletras.com.br).
Kenneth Tynan foi o melhor crítico de dramaturgia da língua
inglesa de sua época. Espectador privilegiado de uma geração
de gigantes do palco e das telas, soube como ninguém descrever
os momentos gloriosos vividos pelo teatro inglês em meados do
século XX. Combinando o prazer da escrita com a precisão
da análise, Tynan celebrizou-se pelas descrições
sintéticas e penetrantes dos artistas que retratava e dos espetáculos
que analisava. Crítico ácido da apatia que dominava o
teatro inglês na década de 50, apoiou com entusiasmo a
nova geração que entrava em cena naquele momento (John
Osborne, Harold Pinter, Arnold Wesker).
Este volume, organizado pelo jornalista Daniel Piza, que também
assina o posfácio, mostra uma de suas facetas mais brilhantes,
a de "retratista" dos grandes nomes artísticos de seu
tempo. Alguns perfis são curtos, mas reveladores e marcados por
frases brilhantes como: "O que um homem vê bêbado nas
outras mulheres, vê sóbrio em Greta Garbo"; "[Marlene
Dietrich] tem sexo, mas nenhum gênero em particular". Os
perfis longos são mais detalhados e revelam os diversos matizes
das carreiras de Ralph Richardson ou Louise Brooks, por exemplo.
Tynan é tão hábil em traçar perfis que até
personagens desconhecidos do leitor brasileiro parecerão instigantes.
Um bom exemplo disso é o perfil do toureiro Antonio Ordóñez,
uma verdadeira aula de tauromaquia e descrição: mesmo
quem não entende ou não gosta de touradas lamentará
não ter estado presente nas memoráveis arenas de Málaga
ou Jerez de la Frontera.
A vida como performance é o oitavo livro da coleção
Jornalismo Literário que a Companhia da Letras publica desde
2002, com grandes nomes do jornalismo mundial que aproximaram reportagem
e ficção com maestria.
Katharine Hepburn
O espetáculo de um ser humano franco, desabrido e obviamente
feliz sempre incomodou tanta gente quanto deliciou e é por isso
que é possível não gostar de Katharine Hepburn
sem jamais tê-la encontrado. Brilhante, descarada, escandalosamente
atrevida, ela provoca excitação por onde passa. Seus próprios
terminais nervosos tinem de júbilo: ela é uma afirmação
da vida, em especial da parte que se chama diversão. Hepburn
é um subproduto jovial da emancipação feminina,
que usa calças e vota, e sua agressividade é a do sol
ao meio-dia.
Há vinte anos, tal quase como hoje, apareceu um artigo num jornal
inglês com o título: "Pare com essa tolice, miss Hepburn!".
O autor estava irritado porque ela decidira que podia se dar bem e prosperar
sem se dar ao trabalho de procurar a imprensa e ele a acusava de ser
uma egoísta neurótica. É uma pena que esse sujeito
não a tenha conhecido. Seu sorriso, que é tão egoísta
e neurótico quanto uma orquídea selvagem, sempre tem um
jeito de pôr à prova nosso coração; ele faz
mirrar gente mesquinha e desinteressante. Sua vitalidade é ensurdecedora.
Na verdade, se pode dizer que ela tem um complexo de Huckleberry Finn,
um puro amor da malandragem, que jamais deixa de preocupar aqueles cuja
visão da vida está prejudicada pela cegueira do trabalho.
Katharine Hepburn nasceu há 43 anos em Hartford, Connecticut,
significativamente o estado natal da garota do limerick, que tinha uma
ausência deplorável de etiqueta. Seu pai era cirurgião
e sua mãe, uma estridente e imprevisível defensora dos
direitos das mulheres. O dr. Hepburn teve seis filhos, uma ninhada de
difícil controle cujas atividades juvenis foram quase tchekhovianas
em sua variedade e futilidade. "Na casa em que crescemos, era terrível",
afirma miss Hepburn, "lágrimas e rixas o tempo todo, mas
ninguém queria ir embora. Era nosso lar e era danado de gostoso."
Ela foi aluna do Bryn Mawr College, de freqüência muito fina,
e durante quatro anos estudou psicologia, tendo aprendido o suficiente
sobre si mesma para se casar, em 1928, com um consultor financeiro de
Wall Street chamado Ludlow Ogden Smith. No mesmo ano, por nenhum motivo
muito bom, o palco a requisitou. De início, ela hesitou um pouco;
uma pequena experiência de amadora na faculdade, um amor inato
pela vida agitada e, sobretudo, uma impaciência crescente perante
a opinião alheia sobre seus talentos foram o necessário
para desencadear sua ambição. O tiro saiu pela culatra
quase imediatamente: logo após o casamento, fez sua estréia
na Broadway em um drama sobre garotas que trabalham em salões
de baile que foi um fracasso. O ator George Coulouris lembra dela, com
acrimônia distante, de calças compridas e os pés
sobre a mesa, almoçando e lendo poesia simbolista francesa entre
as garfadas. Ela certamente sabia que ele sentia um estranho impulso
de esbofeteá-la. Foi por essa época também que
ela se tornou uma séria defensora do uso de calças compridas
pelas mulheres, um capricho que contribuiu muito para popularizar e
que jamais abandonou.
Hepburn teve de esperar quatro anos para chegar ao sucesso no palco:
ele veio em 1932 e dessa vez a peça era sobre amazonas. O diretor
de cinema George Cukor tentou prendê-la logo a Hollywood e ficou
chocado com a desfaçatez com que ela, do fundo de sua ancestralidade
escocesa, exigiu um salário de 1500 dólares por semana,
para começar. "Do jeito que ela fala", suspirou um
amigo, "eles terão de amarrá-la para pentear seus
cabelos." Porém, ela conseguiu o dinheiro e seu primeiro
filme foi A bill of divorcement [Vítimas do divórcio].
O filme a fez como nenhuma outra atriz foi feita na história
do cinema. Frases sobre suas "narinas de cavalinho de balanço",
referências ao "tom áspero de sinal de discar"
de sua voz começaram a apimentar as colunas: um novo mito estava
em construção. Em 1933, interpretou uma aviadora em Christopher
Strong [Assim amam as mulheres], seguido por Morning glory [Manhã
de glória], que lhe deu a Medalha de Ouro de Hollywood de melhor
atriz do ano. A essa altura, já era saudada como a única
rival de Greta Garbo e os críticos, na busca de símiles,
já a comparavam a cisnes e flamingos. Que ela era excepcional
e proficiente em impor sua excepcionalidade, não havia a menor
dúvida.
Nos últimos tempos, temos visto Hepburn como uma comediante arguta
e ágil, mas no começo sua carreira cinematográfica
foi uma mistura de severidade e extravagância. Orientada pelo
delicado Cukor, seu primeiro mestre, ela fez Little women [Quatro irmãs];
cortou os cabelos e vestiu-se como menino em Sylvia Scarlett [Vivendo
em dúvida]; e prosseguiu com The little minister [O pequeno ministro],
Mary of Scotland [Maria Stuart] e Quality street [A rua da vaidade]
- todos admiráveis, sentimentais e um pouco imaturos.
Saudada por suas sobrancelhas erguidas de indignação,
a imprensa começou a invadir sua vida privada. Quase todas as
semanas de 1935, algum jornal trazia a manchete: "Hepburn está
casada com Leland Hayward?". Ela acabara de obter o divórcio
do marido, cujo trabalho em Nova York o mantinha a um continente de
distância dela, e Hayward, que desde então se tornou produtor
de sucessos como South Pacific [Pacífico Sul], Mister Roberts
e Call me madam [Sua excelência, a embaixatriz], era então
seu empresário. Era também um aviador amador e os repórteres
entraram em ação quando ele e Hepburn voaram até
Saint Louis em um avião de dois lugares. "O senhor é
o empresário de miss Hepburn?", perguntou um jornalista
local. "Não", disse Hayward, mentindo de maneira deslavada,
"sou apenas seu marido." A próxima parada deles foi
um pouso forçado em Pittsburgh, onde uma multidão de jornalistas
atravessou a pista. "Você é o marido da miss Hepburn?",
gritaram sete deles. "Não", disse Hayward, arrependido,
mas ainda afável, "sou apenas seu empresário."
Mas já era tarde e a notícia de uma fuga chegou a todas
as primeiras páginas. Hayward, para abafar a história,
foi depois forçado a adotar métodos mais diretos. "Vocês
acham que sou algum tipo de bobo?", respondeu ironicamente quando
lhe perguntaram se Hepburn era ou não sua noiva.
Em 1936, a pergunta era: "Hepburn e Howard Hughes casam?".
Hughes, o esportista milionário que fez Hell's angels [Anjos
do inferno], e, com esse filme, a fama de Jean Harlow, foi amplamente
anunciado como sucessor de Hayward e durante vários meses Hepburn
viveu em estado de sítio, trancada em quartos de hotéis;
em certa ocasião, driblou os repórteres descendo por uma
escada de incêndio, depois de equipar sua criada com um disfarce
de óculos escuros, calças compridas e casaco de pele,
e instruções para que esta se entregasse.
Corriam outras histórias também: de como Francis Lederer,
com quem contracenou em Break of hearts [Corações partidos],
abandonou as gravações depois de um dia de filmagem, queixando-se
de que as câmeras jamais pareciam apontar na direção
dele. Enquanto isso, as violentas propensões à vida ao
ar livre de Hepburn ajudavam a alimentar uma lenda: ela montava, nadava
e jogava tênis exaustiva e diariamente, e seu treinador de golfe
ganhou espaço na imprensa ao anunciar que ela raramente completava
o percurso em mais de oitenta pontos.
Suas ambições cinematográficas incharam: em um
ano, 1936, foi publicamente declarado que ela apareceria em Peter Pan,
A saga dos Forsyte e Santa Joana. E deste último projeto Cecil
Beaton deixou um registro fonético. "Vou raspar a cabeça",
Hepburn disse a ele, com um forte sotaque, "e não vou usar
maquiagem, só graxa". Ela jamais interpretou a personagem,
é claro.
É provável que Hepburn tenha sido a primeira estrela nascida
nos EUA que nunca se apaixonou perigosamente por Hollywood. Manteve
o entusiasmo, a voracidade, a imprudência e a energia quase intactas
e a imprensa caiu em cima dessa normalidade enlevada como se fosse de
alguma forma misteriosa e excêntrica. Ela aprendeu logo a ter
cautela com os entrevistadores e desde o fiasco Howard Hughes todas
as perguntas sobre casamento foram respondidas com um frio e indiferente
"Sim, sou casada. Tenho seis filhos, três dos quais de cor".
Até 1938, já fizera catorze filmes numa carreira de cinco
anos. A maioria deles era boa (os últimos dois tinham sido Stage
door [No teatro da vida] e o alvoroço espirituoso chamado Bringing
up baby [Levada da breca]); mas o ponto de saturação estava
perigosamente próximo. No final daquele ano, um conclave dos
proprietários do Independent Motion Picture Theatre, que nunca
se notabilizou pelo cavalheirismo, apelidou-a de "Veneno da Bilheteria".
Pouco depois, e para a surpresa de ninguém, Hepburn rompeu seu
contrato com a Radio Pictures. Foi uma decisão que lhe custou
200 mil dólares em salários de dois filmes não
feitos, mas a aposta pagou muito bem. Inquieta e acelerada como sempre,
voltou à Broadway e ao teatro; e, quase sem pensar, voltou às
manchetes com o tratamento que dispensou a um gatuno, a quem ela surpreendeu
com as mãos em seu cofre de jóias e fez sair correndo
aos gritos de "que diabos você está fazendo?".
Hepburn entrou naquilo que se provou seu maior sucesso, a comédia
de Philip Barry The Philadelphia story [Núpcias de escândalo].
Comprou os direitos de filmagem do autor, antes do início dos
ensaios, por 30 mil dólares e depois os vendeu para a MGM por
cinco vezes mais. Ela interpretou o papel de Tracy Lord durante dois
anos, um na Broadway, outro em turnê, e adorou. Na última
noite da peça - apropriadamente, num teatro de Filadélfia
- ela implorou ao gerente do teatro que não baixasse a cortina
antes de o teatro estar vazio. "Eu simplesmente odiaria pensar
que o pano alguma vez caiu sobre nossa peça", disse ela,
com lágrimas escorrendo pelo sorriso.
Philip Barry continuou a escrever para Hepburn e, em 1942, ela estrelou
na Broadway Without love [Sem amor], a história de dois incansáveis
carreiristas que tentam fazer o casamento funcionar sem compartilhar
um quarto. A MGM filmou a peça com Hepburn e Spencer Tracy, sob
a direção de George Cukor, ainda fiel à mulher
que ele descrevera, havia poucos meses, como uma "valentona artística".
O resultado foi a chegada à idade adulta da comédia de
Hollywood, uma peça de inteligência fílmica realmente
madura e o equivalente mais próximo na tela da técnica
de palco dos Lunts. Foi a réplica mais completa de Hepburn a
Dorothy Parker, que dissera do desempenho dela numa peça chamada
The lake: "Ela percorre toda a gama de emoções de
A a B".
Hepburn e Tracy, que agora são tão íntimos quanto
amigos podem razoavelmente ser, encarnaram nos últimos dez anos
toda uma tradição de sofisticação americana.
Não é do tipo europeu, aprumada e fulgurante; ela se põe
à vontade, usa tênis em casa e relaxa, rindo discretamente,
em sofás. Tracy, o plácido e sensível panda, e
Hepburn, o albatroz gracioso e cara-de-pau, uniram-se em sucessos festivos
como Woman of the year [A mulher do dia], The world and his wife [Sua
esposa e o mundo], Adam's rib [A costela de Adão] e Pat and Mike
[A mulher absoluta]. O que eles fizeram pelos valores da tela foi substituir
a comédia grosseira do flerte pela comédia mais sutil,
mais cálida, do casamento; e já estava na hora.
"Spencer e eu temos um acordo quando estamos trabalhando",
Hepburn contou-me. "Se esquecemos uma fala, não paramos.
Em Adam's rib, havia uma cena em que nos vestíamos para sair
e eu tinha de pôr um chapéu e dizer 'Como estou?', e ele
deveria dizer algo bom e lisonjeiro. O que aconteceu foi que ele recuou
e disse: 'Você está parecendo a vovó Moses!'. Eu
bati o pé e meio que uivei - mas eles mantiveram a cena."
Vovó Moses, além de usar chapéus, é uma
nonagenária.
No ano passado, Hepburn interpretou Rosalind em As you like it [Como
quiserdes], na Broadway, e depois perdeu por pouco um Oscar por seu
desempenho como a missionária de The African Queen [Uma aventura
na África], durante cuja filmagem nos encontramos pela primeira
vez. De imediato, tem-se a impressão de que ela seria cálida
ao toque, pronta e ansiosa para se comunicar. É cor-de-rosa até
a ponta do nariz, suas narinas brilham como se estivessem oleosas e
o claro osso de seu rosto estica a pele. Ela andava de um lado para
o outro do estúdio, balançando seus elegantes quadris,
com sardas pontilhando a face como uma nuvem de gafanhotos. De perto,
é possível ver rugas em torno de seus olhos, mas foi o
deslumbramento do sol que as colocou ali; elas encerram a vivacidade,
o apetite pela vida que apreciamos. Sua compleição é
delgada como um lápis e capaz, e ela possui mãos práticas;
seus cabelos, uma vigorosa florescência castanha, estavam presos
para trás em um nó.
Ela falou sobre aquela geração de Hollywood que o tempo
parece ter esquecido. "Cagney, Bogart, Tracy, Bette Davis - eles
são todos invulneráveis, é esta a palavra?"
Eu disse que era. Ela vê neles uma certeza, um cerne de diamante
que não pode ser apagado ou desvalorizado: eles eram astros e
estrelas. "E por quê", pergunta subitamente enraivecida,
"os atores deveriam fingir que são como as outras pessoas?
Eles não são. Veja eu: gosto de ir aos teatros em carruagens
douradas, e de não preparar minha própria comida..."
Invulnerável, pensei depois, era uma palavra que cabia a Hepburn
também. E indefesa. Completamente aberta, mas sem brechas em
sua armadura. É o paradoxo que faz as estrelas. Queixar-se de
sua auto-exposição franca seria como bombardear uma cidade
aberta. Lembrei da ocasião, em 1950, em que seu chofer foi levado
ao tribunal sob uma acusação de excesso de velocidade
e ela insistiu em defendê-lo pessoalmente, ficando tão
absorta no tema que recuou, ainda argumentando, e não percebeu
que encostou seu casaco de pele de 5500 dólares numa estufa quente,
danificando-o irremediavelmente. Precisava ser Hepburn, desprotegida
e invencível, para fazer aquilo sem parecer estúpida.
Nesta semana, ela faz sua primeira apresentação em Londres,
interpretando o papel principal na comédia de Shaw The millionairess
[A milionária], no New Theatre. O papel foi escrito para Edith
Evans em 1936, mas até agora Londres não o viu. Hepburn
está numa turnê de seis semanas e já deslocou o
joelho direito de Cyril Ritchard, com quem, no primeiro ato, tem uma
espécie de peleja. Robert Helpmann, que representa o ascético
doutor egípcio que ela finalmente seleciona para ser seu par,
diz que trabalhar com ela é como dançar com Margot Fonteyn
e diferente de tudo o que já lhe aconteceu.
A peça contém um discurso bastante revelador, em que o
médico explica o que o atrai irresistivelmente em Epifania, a
garota com 30 milhões de libras esterlinas e nenhum escrúpulo.
Apaixonou-se pelo pulso dela, diz ele, porque é o pulso da própria
vida. Se o que Hepburn faz é representar no sentido estrito do
termo, isso não sei, mas o que quer que seja, e onde quer que
você esteja sentado, não pode negar o batimento e a urgência
daquele magnífico pulso.
Everybody's: 28 de junho de 1952
|