A Sangue Frio

Material disponibilizado no site da editora Companhia das Letras (www.companhiadasletras.com.br).

O americano Truman Capote foi um escritor versátil: produziu textos de qualidade em vários gêneros (contos, peças, reportagens, adaptações para TV e roteiros para filmes). Mas sua grande obra foi o romance-reportagem A sangue frio, que conta a história da morte de toda a família Clutter, em Holcomb, Kansas, e dos autores da chacina.
Capote decidiu escrever sobre o assunto ao ler no jornal a notícia do assassinato da família, em 1959. Quase seis anos depois, em 1965, a história foi publicada em quatro partes na revista The New Yorker. Além de narrar o extermínio do fazendeiro Herbert Clutter, de sua esposa Bonnie e dos filhos Nancy e Kenyon - uma típica família americana dos anos 50, pacata e integrada à comunidade -, o livro reconstitui a trajetória dos assassinos. Perry Smith e Dick Hikcock planejaram o crime acreditando que se apropriariam de uma fortuna, mas não encontraram praticamente nada.
Perry era um sonhador. Teve criação conturbada e violenta, e achava que a vida lhe tinha dado golpes injustos. Dick, considerado o cérebro da dupla, queria apenas arrebatar o dinheiro e desaparecer. Presos e condenados, ambos morreram na forca em 1965.
Publicado no mesmo ano da execução dos assassinos, A sangue frio rapidamente se tornou um sucesso de crítica e vendas, rendendo alguns milhões de dólares ao autor. A intensa relação que Capote estabeleceu com suas fontes foi determinante para o êxito da obra. Além de passar mais de um ano na região de Holcomb, investigando e conversando com moradores, ele se aproximou dos criminosos e conquistou sua confiança. Traçou um perfil humano e eloqüente dos dois "meninos", como costumava chamá-los.
Por seu estilo que combina a precisão factual com a força emotiva da criação artística - um romance de não-ficção, nas palavras do próprio autor -, A sangue frio é um marco na história do jornalismo e da literatura dos Estados Unidos. Reflexão sutil sobre as ambigüidades do sistema judicial do país, o texto desvenda o lado obscuro do sonho americano.

Apresentação

Sangue quente no chicote

Ivan Lessa

Está no lendário das colunas sociais: Truman Capote, Gore Vidal e Norman Mailer, em sarau literário, discutiam livros. Cada qual, evidentemente, falando de seus próprios livros. Capote, o mais baixinho e fisicamente frágil dos três, assim como de longe o mais venenoso, virou-se e disse (Capote era uma das poucas pessoas no mundo capazes de "virar-se" e dizer uma coisa): "Tudo isso que vocês estão dizendo pode ser muito interessante, mas a verdade é que eu escrevi uma obra-prima, e vocês não".
Não é que o baixinho estava com toda a razão? O danado escreveu mesmo uma obra-prima. Sim, claro, estamos falando, como Capote, de A sangue frio.
Nascido em Nova Orleans em 1924, falecido na Califórnia em 1984, Truman Streckfus Persons adotou por conta própria, aos onze anos, em 1935, o sobrenome do padrasto, Joseph Garcia Capote, descendente de portugueses, para quem essas coisas são importantes. De 1941 a 1944, trabalhou como office-boy na editoria de arte da The New Yorker, berço esplêndido de tantos astros e estrelas do futebol literário norte-americano. Acabou irritando o irritadiço poeta Robert Frost, o que lhe valeu a demissão. Em 1945, Capote publicou dois contos: um na revista Mademoiselle, outro na Harper's Bazaar. Conto em revista, na época, era o equivalente a vender direito de filmagem para Hollywood. Além do dinheiro, dava cartaz. Em 1948, Capote publica Other voices, other rooms, romance gótico ambientado no sul dos Estados Unidos em que o texto perdia de longe, em matéria de escândalo, para a contracapa do livro: lá estava ele, lânguido como Claudette Colbert em Cleópatra (1934), estendido sobre o que só podia ser uma liteira. Com 24 anos, baixinho, voz escorrida como melado, decadente de estirpe, Truman Capote estava pronto para enfrentar e domesticar o mundo. Publicou a coletânea de seus contos, também góticos, A tree of night, em 1949, e um romance mais ligeiro, A harpa de erva, em 1951, que acabou virando primeiro peça e, já no século XXI, um infelizmente telefilme.
1958 é o ano que mais deve irritar Vidal e Mailer. Capote publica uma noveleta, Breakfast at Tiffany's, que, três anos mais tarde, viraria filme-veículo para Audrey Hepburn e que, no Brasil, passou com o estonteante título de Bonequinha de luxo, como se fosse gravação dos Anjos do Inferno ou filme de Gilda de Abreu. O livrinho vendeu mais que os lendários e inexplicáveis "pãezinhos quentes". Capote é festejado. Festejadíssimo. E gosta, gosta muito das festas, festinhas e festivais em sua homenagem. Vira astro de coluna social, figura indispensável em reuniões de aquilo que já foi chamado, por nós, de "café-society": alta sociedade e até mesmo grã-finos, para se ter uma idéia de como o mundo é engraçado. Capote não percebeu, escondido nas mãos que o afagavam, cobertas por longas luvas de veludo, o punhal escondido, nem pressentiu o gesto à procura do chicote.
1959. Possivelmente meio de ressaca, depois da festa na noite anterior, Capote folheia o - claro - The New York Times. Sabe-se lá que musas (mais sobre elas daqui a pouco) fizeram com que seus olhos se detivessem sobre uma pequena nota de dois parágrafos sobre como o sr. e a sra. Herbert W. Clutter, mais filho e filha, todos da cidade de Holcomb, no estado de Kansas, o mesmo de Dorothy, Toto e do Mágico de Oz, haviam sido brutalmente assassinados. Capote, segundo seu próprio relato, bolou que isso poderia dar num bom livro sobre crime e sobre um estado que desconhecia, o Kansas. Fez as malas e partiu para Holcomb na companhia de sua amiga, a também escritora (e boa) Harper Lee, aquela daquele filme com o Gregory Peck, To kill a mockingbird (1962), e o romance de título idêntico, ganhador do prêmio Pulitzer, nenhum dos quais, insista-se, recebeu o título de O sol é para todos - isso é desses massacres que só acontecem no Brasil. Frise-se: quando Capote e Harper Lee partiram para o Kansas, os assassinos ainda eram desconhecidos e não haviam sido capturados.
Ah, sim. As musas. The muses are heard. 1958. Reportagem, por assim dizer. Capote acompanhou a excursão à União Soviética de uma montagem de Porgy and Bess (a produção passou pelo Municipal do Rio), sob o patrocínio do Departamento de Estado, como parte de intercâmbio cultural entre Estados Unidos e o então Reino do Mal. Foi publicado na The New Yorker, para variar, talvez a única revista no mundo, mesmo até os dias de hoje, que banque e encoraje a prática de alguma forma, mesmo e inclusive, nova ou inovadora de expressão artística. Nela, Capote afiara seus pequenos dentes de piranha de jornalista, conforme atestam seus inúmeros perfis para a revista. As maldades dele com Marlon Brando, durante as filmagens de Sayonara (1957), são, como tanta coisa do homenzinho, antológicas.
Em Holcomb, no Kansas, a figura dramaticamente urbana de Truman é quase tanto motivo de choque quanto o brutal crime múltiplo. Harper Lee lhe foi utilíssima para angariar a confiança e abrir as comportas do papo entre as pessoas entrevistadas. Capote sabia ouvir. Isso lhe foi útil na pequena cidade e em meio à sociedade, que tanto admirava e cultivava, de Manhattan. Capote, um conquistador nato, acabou hipnotizando (é o único verbo possível) os habitantes-chave de Holcomb. Presos os dois assassinos, conseguiu ter acesso a eles e - seria identificação? - aos trejeitos psicológicos que aproximam dois homossexuais, se um quê homossexual tivesse Perry Smith. Há teses a respeito - acabou íntimo de Perry, ele também pouco mais que um anão, como Capote.
Capote passou ao todo um ano e meio no Kansas examinando aspectos da "história" e conversando com quem podia, principalmente os "dois meninos", como os chamava. Depois foram quase cinco anos de quebrar pedreira, ou geleira, em Verbier, nos Alpes suíços, onde possuía um pequeno chalé. O tom jet-set, tão ao gosto do pobre Capote, foi dado pelo resto do trabalho, efetuado em Brooklyn Heights, onde era dono de um apartamento.
Consta que Capote passou um desses seis anos apenas trabalhando nas notas, burilando-as, antes de escrever uma única linha do livro (que ainda não fora batizado como "non-fiction novel" ou "romance sem ficção"). Sempre segundo Capote, ele já delineara o livro inteiro em sua mente, exceto pela última parte, aquela que ele chamava de "a dispensação" do caso. Ainda no departamento do "consta" (Capote, infelizmente, mentia furiosamente. Dele também a invenção, pode-se dizer, da "vida-com-ficção".): ele garantia, em todos os seus depoimentos e entrevistas, ser capaz de memorizar horas de conversa, tendo treinado para isso com um amigo, que lia trechos de um livro e ele, Capote, depois, acertava lá por volta dos 95% do texto. Era sua maneira de dispensar o uso do odioso gravador, talvez o maior inimigo do bom jornalismo. Consta (sempre e novamente) que Capote não lançou mão de 80% de suas pesquisas. Consta que se tivesse publicado 20% do material acumulado naqueles anos de entrevista acabaria com um livro de mais de 2 mil páginas. Há uma infinidade de "consta" na vida de Capote. Na obra, para felicidade geral, nada consta, a não ser talvez o melhor texto da literatura e da reportagem americana do século XX.
Truman Capote batizou seu livro de "romance sem ficção". Para ele, jornalismo era apenas fotografia literária. Ele ambicionava algo mais. Um gênero só para ele. Não achava que Hiroshima, de John Hersey, pudesse ser comparado com A sangue frio. Para ele, o livro de Hersey era, claro, criativo, no sentido de que não coletara gente falando para um gravador, sofrendo depois um processo editorial. Hiroshima era jornalismo clássico, assim como Children of Sanchez, de Oscar Lewis, era um documentário extraído de fitas gravadas e, por mais engenhosas e comoventes, não constituía um livro criativo. Seu modelo, beirando o ideal, era Lillian Ross e o que ela fizera com Picture, extraordinária reportagem literária em que ela acompanhara John Huston e a filmagem de uma adaptação do romance The red badge of courage, de Stephen Crane. Claro que fora primeiro publicada em - é evidente - The New Yorker. Outros que chamaram a atenção estética de Capote: Joseph Mitchell, o texto escarrado ("emblemático" é a mãe) da New Yorker e, isso é curioso, a inglesa Rebecca West.
(Curioso Capote não morder nenhum dos citados. É definitivo e antológico seu julgamento sobre as sandices perpetuadas pelo pobre do Jack Kerouac. Quando confrontado com o terrível On the road, Capote foi ao âmago da questão: "Isso não é escrever. Isso é bater à máquina".)
A sangue frio foi lançado em início de 1966, virou estrondoso sucesso de crítica e vendas, desfrutou das vantagens de ser o livro do mês e para comemorar o sucesso e a recém-adquirida fortuna, o bom e leviano Truman Streckfus Persons deu o que até hoje é considerado o baile do século passado: o Black and White Ball, no Hotel Plaza de Nova York. Baile e autor foram considerados clássicos instantâneos.
Assim como nas últimas páginas de A sangue frio, encerremos em ritmo de fuga, citando o não muito digno de confiança Capote (ele não disse nada sobre a tradução ou o uso de citações):
"Um dia, comecei a escrever, sem saber que me acorrentara por toda vida a um senhor nobre porém implacável. Quando Deus lhe dá um dom, ele também lhe dá um chicote; e o chicote se destina apenas à auto-flagelação... Estou aqui sozinho na escuridão de minha loucura, sozinho com meu baralho - e, é claro, o chicote que Deus me deu".
Hum. Capaz.


1. Os últimos a vê-los com vida

A cidade de Holcomb fica nas planícies do oeste do Kansas, lá onde cresce o trigo, uma área isolada que mesmo os demais habitantes do Kansas consideram distante. A uns 110 quilômetros da divisa entre o Kansas e o Colorado, a paisagem, com seu céu muito azul e o límpido ar do deserto, tem uma aparência que está mais para a do Velho Oeste do que para a do Meio-Oeste. O sotaque local traz as farpas da pronúncia cortante da pradaria, a nasalidade dos caubóis, e os homens, muitos deles, usam calças apertadas, chapéus Stetson e botas de salto alto com bicos pontudos. A terra é plana, e os panoramas são incrivelmente extensos; cavalos, rebanhos de gado e um aglomerado branco de silos de cereais que se elevam com a graça de templos gregos são visíveis muito tempo antes que o viajante os alcance.
Holcomb também pode ser vista de muito longe. Não que haja muito para ver - apenas uma congregação desordenada de construções dividida ao meio pelos trilhos da linha principal da Santa Fe Railroad, um vilarejo fortuito delimitado ao sul por um trecho barrento do rio Arkansas, ao norte por uma auto-estrada, a Route 50, e a leste e oeste pelas pradarias e os campos de trigo. Depois que chove, ou quando a neve descongela, a poeira das ruas - sem nome, sem sombra, sem calçamento - transforma-se numa lama espessa e pegajosa. Numa das extremidades da cidade fica uma estrutura austera revestida de estuque, em cujo teto se ergue um letreiro elétrico em que se lê a palavra DANCE - mas ninguém dança mais, e faz muitos anos que o anúncio está apagado. Ao lado fica outro prédio com um letreiro irrelevante, dessa vez pintado em letras douradas que aos poucos vêm descascando numa vitrine suja - BANCO DE HOLCOMB. O banco fechou as portas em 1933, e suas antigas dependências foram transformadas em apartamentos residenciais. É um dos dois "prédios de apartamentos" da cidade: o segundo é um casarão desconjuntado que, por abrigar boa parte do corpo docente da escola local, é conhecido como Casa dos Professores. Mas as residências de Holcomb são em geral casas térreas de madeira, com varandas na frente.
Ao lado da estação do trem, uma mulher magra de calças jeans, botas de caubói e jaqueta de couro cru comanda uma agência dos Correios caindo aos pedaços. A estação ferroviária propriamente dita, com sua pintura descascada cor de enxofre, é igualmente deprimente; o Chief, o Super-Chief e o El Capitan passam por lá todos os dias, mas esses famosos trens expressos jamais param em Holcomb. Nenhum trem de passageiros pára na cidade - só um ou outro trem de carga. Na estrada há dois postos de gasolina: um também funciona como empório de poucos suprimentos, enquanto o outro faz hora extra como café - o Hartman's Café, onde a proprietária, a sra. Hartman, serve sanduíches, café, refrigerantes e cerveja de baixo teor alcoólico. (Holcomb, como todo o resto do Kansas, vive sob a lei seca.)
E isso é tudo, literalmente. A menos que ainda contemos, como é justo contar, a escola de Holcomb, estabelecimento cuja beleza revela uma circunstância que a aparência da comunidade de resto camufla: os pais que mandam seus filhos para essa escola moderna, "consolidada" e dotada de bons professores - com turmas que vão do jardim-de-infância ao final do secundário e com uma frota de ônibus para o transporte dos alunos, que no total são cerca de 360 e acorrem para as aulas de distâncias que chegam a quase cem quilômetros - são, em geral, pessoas prósperas. Em sua maioria proprietários rurais, têm origens muito diversas - alemã, irlandesa, norueguesa, mexicana, japonesa. Criam bois e carneiros, plantam trigo, sorgo, capim e beterraba. A agricultura é sempre uma atividade de risco, mas no oeste do Kansas os que a praticam consideram-se "apostadores natos", pois precisam enfrentar chuvas extremamente escassas (a média anual é de 450 milímetros) e angustiantes problemas de irrigação. No entanto, por sorte, nos últimos sete anos não houve estiagem, e os fazendeiros do condado de Finney, de que Holcomb faz parte, tiveram bons resultados: ganharam dinheiro não só com a agricultura, mas também com a exploração dos abundantes recursos de gás natural, e esses ganhos se refletiram na escola nova, nos interiores confortáveis das sedes das propriedades, nos elevados e repletos silos de cereais.
Até uma certa manhã de meados de novembro de 1959, poucos americanos - e bem poucos habitantes do Kansas, na verdade - jamais tinham ouvido falar de Holcomb. Assim como as águas do rio, assim como os motoristas que trafegam pela rodovia, assim como os trens amarelos que correm pelos trilhos da Santa Fe, o drama, na forma de acontecimentos excepcionais, jamais tinha feito escala naquele lugar. E os habitantes da cidade, num total de 270, sentiam-se perfeitamente satisfeitos com isso, contentando-se com uma existência bem comum - trabalhar, caçar, ver televisão, participar das atividades sociais da escola, comparecer aos ensaios do coro ou às reuniões do Clube 4-s. Nas primeiras horas daquela madrugada de novembro, porém, sons nada costumeiros sobrepuseram-se aos ruídos noturnos normais de Holcomb - a histeria aguda dos coiotes, o arrastar seco das folhas sopradas pelo vento, o lamento distante dos apitos de locomotiva. Na ocasião, não foram ouvidos por ninguém na Holcomb adormecida - quatro disparos de espingarda que, no fim das contas, deram cabo de um total de seis vidas humanas. Depois deles, porém, os moradores do local, até aquele momento tão pouco desconfiados uns dos outros que quase nunca se davam ao trabalho de trancar suas portas, passaram a revivê-los vezes sem conta em suas fantasias - aqueles disparos sombrios que produziram clarões de suspeita à luz dos quais muitos velhos vizinhos começaram a olhar-se de um modo estranho e a se comportar como estranhos.