A saga da faxineira que se tornou pedagoga...

Aos 13 anos, precisou de autorização para poder trabalhar; agora, vai fazer pós-graduação

Não, não tenho caminho novo
O que tenho de novo
É o jeito de caminhar
Aprendi
(o caminho me ensinou)
a caminhar cantando
como convém
a mim
e aos que vão comigo
Pois já não estou mais sozinho

(Trecho do poema “A vida verdadeira”, de Thiago de Mello, citado no convite dos formandos de hoje da Unicamp)

“Quando subir ao palco do Centro de Convenções da Unicamp esta noite para fazer o juramento em nome dos formandos em pedadogia, a ex-faxineira Marinalva Imaculada Cuzin, 36, três filhos, vai dar por cumprida a lição do poeta. Nem ela está acreditando que é verdade.
Filha de um casal que se separou antes de ela completar um ano de idade, Marinalva foi criada pelos avós maternos. Estudou apenas os quatro primeiros anos no grupo escolar Carlos Cristóvão Zink e foi à luta para ajudar o avô, um humilde funcionário aposentado do DER (Departamento de Estradas de Rodagem), a sustentar a casa.
Aos 13 anos, precisou de autorização do Juizado de Menores para conseguir seu primeiro emprego com carteira assinada: empacotadora da loja de roupa Paratodos, em Campinas. Depois, foi caixa da Drogaria Glicério e, aos 18, conseguiu uma vaga de monitora de educação infantil na prefeitura, trabalhando das 8h às 18h.
Casou com um zelador de prédio, teve três filhos e viu-se obrigada a arrumar um segundo emprego à noite. Com 23 anos, trabalhava na creche durante o dia, fazia supletivo à noite e, das 23h às 1h30, era faxineira do cursinho vestibular do DCE (Diretório Central dos Estudantes) da Unicamp.
“Achava que minha vida de casada e de funcionária pública muito chata, estava acomodada. Por isso resolvi continuar estudando para mudar de vida”, lembra Marinalva.
Daí para frente, de fato, sua vida não parou mais de mudar. Cursou magistério no tradicional Colégio Carlos Gomes. Conseguiu uma bolsa de estudos para fazer o cursinho no mesmo DCE onde trabalhava e passou em primeiro lugar no vestibular da PUC de Campinas. Mas preferiu fazer pedagogia na Unicamp porque era de graça.
“Entrei na faculdade casada, me separei, casei de novo, estou me formando e, na segunda-feira, já vou me inscrever no curso de pós-graduação”, diz Marinalva. O tema do seu projeto de pós é “Um olhar psicodramático nas inter-relações sociais”.
Até ser escolhida pelos colegas para fazer o juramento dos formandos na cerimônia de colação de grau, ela teve de vencer uma longa corrida de obstáculos, ainda mais numa sociedade conservadora como a campineira, mas nunca pensou em desistir. O casamento entrou em crise quando ela começou a sair para ouvir palestras ou ir ao cinema, enquanto o marido preferia que ela cuidasse da casa e dos filhos. “Os objetivos no casamento foram se diferenciando, os valores mudando, pintou o ciúme, não teve jeito”.
Em 1998, ela resolveu sair de casa levando só a roupa do corpo e a filha, então com 14 anos. Os dois meninos ficaram com o pai. O problema é que não tinha para onde ir e o único jeito que encontrou foi invadir a moradia estudantil da Unicamp. “Tentei numa boa, expliquei a minha situação, mas a burocracia não quis saber. Como não havia feito inscrição para a moradia na época certa, tive que pular a janela da cozinha com minha filha”.
Três dias depois, foi despejada. Sem apoio da família nem dinheiro para pagar aluguel, ameaçou acampar em frente ao alojamento. Ficou com medo até de perder a guarda da filha.
Mas logo se deu um jeito. As duas puderam ficar provisoriamente albergadas numa sala de estudos por oito meses até chegar outra carta de despejo. Mãe e filha sobreviviam com a bolsa-trabalho que ela ganhou para fazer serviços gerais na biblioteca. “Foi a época mais difícil. No começo, houve dia de não ter dinheiro nem para comprar água”. A essa altura, porém, ela já tinha conseguido um emprego com salário melhor e pôde alugar um apartamento no bairro de Barão Geraldo, onde fica a Unicamp. Com a ajuda dos colegas, do novo marido, que conheceu na Unicamp, e da cervejaria Kaiser, que patrocinou o material didático, foi levando o curso até o fim.
Este ano, tudo melhorou. Desde fevereiro, a ex-faxineira trabalha à noite no presídio Ataliba Nogueira, em Hortolândia, próximo a Campinas, onde é responsável pelo curso de alfabetização de adultos. Além disso, continua fazendo suas pesquisas no Laboratório de Políticas Públicas e Planejamento Educacional da Unicamp.
Agora, ela mora com o marido, o auditor fiscal Marcelo Takemoto, numa chácara do bucólico Vale das Garças. É lá que ela vai fazer a festa de formatura hoje à noite. “Aluguei até um videokê”, comemora, enquanto experimenta a beca emprestada pela Unicamp.”