A Milésima Noite

Material disponibilizado no site da editora Companhia das Letras (www.companhiadasletras.com.br).

A milésima segunda noite da avenida Paulista é uma coletânea de textos escritos ao longo da década de 40, em que Joel Silveira (1918-) emprega, de forma inovadora no Brasil, recursos próprios da literatura. Dono de um estilo famoso pela mordacidade, o jornalista cobriu fatos que marcaram a vida política do país e, no Rio de Janeiro, conviveu com artistas e intelectuais como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Paulo Mendes Campos e Rubem Braga.
Sua primeira matéria de destaque foi "Grã-finos em São Paulo", perfil debochado da elite paulistana que saiu em 1943, na revista carioca Diretrizes, de Samuel Wainer. O texto - uma das mais importantes reportagens brasileiras - chamou a atenção de Assis Chateaubriand. Pouco depois, uma entrevista dada a Joel por Monteiro Lobato, criticando a ditadura Vargas, provocou o fechamento da Diretrizes. O jornalista foi então trabalhar com Chatô nos Diários Associados, ao lado de figuras ilustres como David Nasser, Nelson Rodrigues, Lucio Cardoso, Gilberto Freyre, José Lins do Rego, entre outros.
Ao voltar da Itália, onde atuou como correspondente na Segunda Guerra, a serviço de Chatô, Joel faria sua reportagem mais conhecida. O conde Francisco Matarazzo Jr. preparava uma grandiosa festa para o casamento de sua filha, e o viperino Joel foi incumbido de escrever sobre o assunto. Assim nasceu "A milésima segunda noite da avenida Paulista", matéria que descreve o casamento de Filly Matarazzo, herdeira do maior parque industrial da América Latina, com o carioca João Lage.
Além de reportagens, o livro traz crônicas curtas e bem-humoradas sobre a vida cultural do Rio, além de textos situados entre o perfil e a entrevista, retratando escritores e artistas como Monteiro Lobato, Agripino Grieco, Antônio Nássara, Candido Portinari e João Cabral de Melo Neto.
O jornalista Fernando Morais, autor de Chatô, o rei do Brasil, assina o posfácio do livro, em que faz um perfil de Joel Silveira, comentando a trajetória e fatos recentes da vida do jornalista, como sua "anticandidatura" à Academia Brasileira de Letras.

1943: Eram assim os grãs-finos em São Paulo

Durante uma semana, fiquei atordoado com a vida elegante de São Paulo. Haviam me levado para algumas festas; primeiro um aperitivo, colorido e com pedaços de fruta dentro, depois uma carreira rápida de automóvel. Estive em jantares fascinantes. As mulheres, muito belas e perfumadas. Particularmente aquelas que puxam os cabelos para cima, num jeito que abandona aos nossos olhos as lindas nucas nuas. Durante uma tarde inteira, fiquei semideitado numa poltrona de um apartamento chique, no Centro da cidade. O dono era um rapaz que eu não conhecia e que possivelmente talvez ainda não saiba quem sou e o que fui lá fazer. Fui de mistura com outros, como penetra. Os rapazes se vestem muito bem e telefonam. Telefonam de cinco em cinco minutos e conversam com Lili, com Fifi, com Lelé. Recebem também telefonemas de Fifi, de Lili e de Lelé. Conversei longamente com um rapaz, inteligente e vivo, que eu conhecera de caminhadas pela Lapa e discussões de madrugada, aqui no Rio de Janeiro. Está irreconhecível. Fez roupas novas (o feitio de cada, me garantiu, não custa menos de um conto e duzentos), adquiriu novos hábitos. Um dos hábitos: conversar sobre os feitos da noite anterior na pista do Jequiti.
São Paulo sempre teve seu mundo de luxo, um mundo essencialmente grã-fino. É coisa que acontece com todas as cidades que enriquecem. A riqueza paulista, é sabido, vem de suas fábricas. Agora as fábricas estão trabalhando ainda mais, porque a guerra é exigente. Dia e noite, os motores não param. Há uma turma de operários que passa o dia inteiro diante dos motores. Quando chega a noite, a turma vai embora, muito cansada, e chega outra que se cansará até de madrugada.


A ÓPERA

Então, as cifras vão crescendo. A gente lê os relatórios, tão frios, conversa com homens ricos, olha para as vitrines onde as peles e os brilhantes são cada vez mais caros - e tudo isso nos está dizendo que São Paulo está cada vez mais rico. As mulheres compram as peles, compram os brilhantes, os homens jogam na Bolsa pequenas fortunas, jogam no Automóvel Club o dinheiro que ganharam hoje, que ganharão amanhã.
O dinheiro torna tudo belo: o mundo elegante de São Paulo, neste ano de 1943, está num dos seus momentos de maior esplendor. Há uma atmosfera de conforto em tudo: as mulheres, como as orquídeas que nascem de dezenas de enxertos, não poderão ser mais requintadas e preciosas. É como se fosse uma apoteose. Nas óperas a gente vê coisas mais ou menos semelhantes: o libreto vai, vai e, perto do fim, tudo se torna grande e maravilhoso. Depois a ópera acaba.


O MAIOR DA AMÉRICA DO SUL
Um dia desses um rapaz paulista, faminto e desempregado, resolveu se matar. Subiu até o último andar do edifício Martinelli - pularia lá de cima. Mas a altura era enorme e o rapaz vacilou. Lá embaixo, impaciente e aflita, a multidão esperava que o rapaz se decidisse. Mas o rapaz resolveu não se matar. Os jornais anunciaram, se o rapaz pulasse, aquele seria o mais sensacional suicídio da América do Sul. O edifício de onde o rapaz ia saltar é o maior da América do Sul. Mas não o será dentro em breve: ao seu lado já está crescendo outro, que será maior do que o maior da América do Sul.
Há coisas muito estranhas em São Paulo: os cafés não têm cadeiras nem mesinhas, dessas onde a gente costuma sentar e conversar. O trânsito das ruas é dirigido por guardas rigorosos, como nas outras cidades importantes. E nas salas do Automóvel Club homens muito ricos jogam razoáveis fortunas, em alegres jogos de carta. Um financista de São Paulo, dono de várias fábricas e várias empresas, é homem sensível e inteligente, muito culto, que adora livros e faz versos. Seu rosto é cor-de-rosa, como o rosto das crianças. Seus cabelos estão alvos, porque a vida cheia de trabalho do milionário os fez assim. Mas não existe ódio nem raiva na voz do financista: ele conversa sobre livros, lê suas traduções de poemas clássicos e sua voz é suave e absorvente, como uma esponja.


A FLOR
Mas os milionários são muitos. Raros são os milionários poetas em São Paulo, mas há muitos outros que não fazem versos. Uma noite, no Jequiti-Bar, conheci alguns deles: o milionário Lafer, o milionário Pignatari, o milionário Matarazzo, o milionário Crespi. Era uma festa somente para milionários, e sobre todos aqueles sobrenomes repousava a força paulista de hoje. Por detrás dos sobrenomes, há um mundo incrível: centenas de fábricas, milhares de chaminés, milhares de motores, milhares de operários. Era um grupo terrível, avassalador. Com um gesto de mão, qualquer um deles poderia me aniquilar, me tanger longe, lá na rua. Mas os milionários apenas sorriam. Sorriam e bailavam com as mulheres, todas muito belas. Alguns daqueles homens, os pais de quase todos eles, haviam chegado pobres ao Brasil. Mas São Paulo os estava esperando, e hoje eles são donos das fábricas, das indústrias e dos lucros paulistas.
É noite e São Paulo rico está resumido ali na pista do Jequiti-Bar. Durante o dia, as mulheres fizeram coisas inúteis: acordaram tarde, almoçaram em bloco, jogaram pife-pafe, compraram a revista Sombra, tomaram chá na Livraria Jaraguá, jantaram na Papote e falaram das amigas.
Os homens ganharam dinheiro. Alguns não fizeram muito esforço para isso: apenas assinaram alguns papéis. Outros estiveram nas fábricas, conversaram com o gerente, telefonaram para o Rio. À tarde foram ao Automóvel Club, um lugar triste como um cemitério. Perderam algum dinheiro em jogos inocentes; mas o que perderam nem chega a representar uma humilde fração dos lucros que conquistaram durante o dia.
O Jequiti é o mar noturno onde todos se encontram. Um mar de felicidade onde todas as possíveis tristezas e decepções se diluem e se inutilizam.


O "COIN DES BOUQUINS"
O chá na Jaraguá faz parte do ritual grã-fino. Lili não o dispensa. Zezé e Lelé fazem tudo, adiam tudo, mas não podem perder o chá na Jaraguá. O leitor, geralmente desprevenido, estará pensando, sem dúvida, que a Jaraguá é apenas uma casa de chá. Não. A Jaraguá também é livraria.
Um dos seus freqüentadores, aliás, me corrigiu:
- A Jaraguá é uma livraria. Apenas nos fundos existe um lugar onde se pode tomar chá e conversar sobre livros e quadros.
A intenção - intenção de alguns artistas e escritores - era muito boa. Mas me parece que o grã-finismo está estragando o plano. A verdade é que a Jaraguá, que os seus idealizadores planejavam tornar imprescindível no mundo artístico e cultural de São Paulo, é hoje, apenas, mais um ponto de reunião do grã-finismo, um ponto onde Fifi marca encontro com Lelé para falar mal de Zuzu.
Um dos autores do plano da Jaraguá me explicou:
- Nós fizemos aqui o que existe na Inglaterra. Você sabe [eu não sabia] que em Londres e outras cidades inglesas, principalmente Cambridge e Oxford, há o que se chama a "livraria com sala de chá".
O objetivo dos ingleses, em Paris também existem muitas livrarias idênticas, é criar um ponto de reunião de artistas e intelectuais, enfim, um coin des bouquins, você sabe.
- O quê?
- Um coin des bouquins como aquele de que fala Anatole France no M. Bergeret, que encontrava os companheiros de prosa "chez M. Paillor, libraire, à l'enseigne de St. Margueritte". Outro objetivo da livraria é o de vender bons livros antigos e modernos, livros de arte, boas edições e encadernações. Depois o Léo Vaz, sempre cheio de idéias, sugeriu a Bolsa do Livro.
Em poucas palavras, a Bolsa do Livro é um pedaço de cartolina pregado numa parede da livraria. Um cavalheiro que tenha um livro raro para vender escreve o nome do livro e o preço na cartolina. Outro cavalheiro, que deseje adquirir uma raridade, faz a mesma coisa. Na tarde em que estive na Jaraguá, visitei a cartolina: o lado das