Jornada do Herói: A Estrutura Narrativa Mítica na Construção
de Histórias de Vida em Jornalismo
Por Monica Martinez*
Resumo
Este trabalho tem como objetivo expor um novo modelo de construção
de histórias de vida para comunicadores sociais. A proposta tem
como embasamento teórico o método de histórias
de vida, enquanto narrativa de não-ficção, proposto
por Edvaldo Pereira Lima, do Núcleo de Epistemologia da Escola
de Comunicações e Artes, no contexto do Jornalismo Literário
Avançado; o aparato conceitual em torno da crise dos paradigmas
e da entrevista dialógica, de Cremilda Medina, do mesmo núcleo;
a abordagem do pensamento complexo, conduzida pelo cientista social
francês Edgar Morin; as formulações do mitólogo
norte-americano Joseph Campbell sobre a figura do herói; e as
contribuições do psicanalista suíço Carl
Gustav Jung – em especial os conceitos de arquétipos, consciente
e inconsciente coletivos e sincronicidade.
Palavras-chave
Jornalismo, Reportagem, Grande Reportagem, Livro-reportagem, Histórias
de Vida, Biografias, Perfis, Jornada do Herói.
Introdução
O jornalista Thomaz Eloy Martinez, citando o ensaísta norte-americano
Hayden White, diz que “a única coisa que o homem realmente
entende, a única coisa que ele de fato conserva na memória,
são os relatos” . E como narrar de forma a atender ao impulso
básico dos seres humanos de ouvir histórias, de forma
que haja um ritmo – com começo, meio e final adequado --
para satisfazer um leitor exigente?
Naturalmente há várias propostas . Uma delas é
um método que se distingue por propor um padrão narrativo
ao qual os seres humanos estão habituados há milênios.
Sua origem remonta à década de 40 do século 20.
Ao analisar mitos, contos populares e de fadas de todo o mundo, o mitólogo
norte-americano Joseph Campbell averiguou a existência de uma
estrutura básica que permeia as narrativas míticas. Batizado
de Jornada do Herói, este monomito é o cerne do livro
“O Herói de Mil Faces” , publicado em 1949.
Elementos básicos do padrão arquetípico
Campbell propõe a aventura do herói em 17 etapas, que
são divididas em três fases:
1. A partida
1.1. O chamado da aventura: evento que mudará a vida do herói.
1.2. Recusa do chamado: o herói pode hesitar em aceitar ou declinar
ao chamado.
1.3. O auxílio sobrenatural: é comum nesta etapa a presença
de figuras-mestras, que dão ao herói segurança
e conselhos para atingir sua meta.
1.4. A passagem pelo primeiro limiar: a figura do guardião, comum
nas narrativas míticas, tem a função de defender
o portal que separa o herói da experiência.
1.5. O ventre da baleia: exilado do cotidiano, o herói passa
por um processo de internalização.
2. A iniciação
2.1. O caminho das provas: no processo de metamorfose, o herói
vivencia provações.
2.2. O encontro com a deusa: permite a assimilação dos
atributos do sexo oposto.
2.3. A mulher como tentação: o herói deve buscar
o equilíbrio, sem cair nos extremos de ver o sexo oposto como
um elemento carnal ou sublimá-lo.
2.4. A sintonia com o pai: ocorre uma ruptura decisiva com os valores
passados, permitindo ao herói visualizar sua missão no
mundo.
2.5. A apoteose: o herói se torna livre para mudar seu nível
de consciência.
2.6. A benção última: ultrapassado os limites das
imagens terrenas, o herói se confronta com o desafio final de
transcender a simbologia dos ícones.
3. O retorno
3.1. A recusa do retorno: o herói deve voltar e transmitir o
conhecimento a seus pares.
3.2. A fuga mágica: alguns heróis precisam de auxílio
para retornar ao cotidiano.
3.3. O resgate com auxílio externo: o que pode envolver a presença
ativa de outras personagens na narrativa.
3.4. A passagem pelo limiar do retorno: reentrada do reino místico
ao cotidiano.
3.5. Senhor de dois mundos: a mentalidade ampliada do herói leva-o
a ter papel benéfico entre seus contemporâneos.
3.6. Liberdade para viver: renascido, o herói pode desfrutar
de uma nova biografia pessoal e abrir-se para novas experiências.
A estrutura descoberta por Campbell é extremamente rica. Ela
parte de questões sutis, como a imaginação e os
auxiliares sobrenaturais -- tanto internos quanto externos -- para relatar
a evolução que passa o herói durante sua jornada
em direção a patamares ampliados de consciência.
Além disto, é importante notar que este ganho ultrapassa
a dimensão pessoal, refletindo-se em nível comunitário
e/ou humanitário.
A transposição da estrutura para o cinema
Nos anos 80, um analista de roteiros da Companhia Walt Disney queria
entender o mecanismo de uma boa história . Ao se deparar com
o livro “Herói de Mil Faces”, Christopher Vogler
entende que o padrão que intuíra havia sido mapeado pelo
mitólogo. Ele elaborou um memorando de sete páginas intitulado
“Guia Prático de O Herói de Mil Faces”, no
qual exemplifica a idéia por meio de filmes clássicos
e da época. Com o tempo, o manuscrito é enriquecido e
publicado com o título The Writer’s Journey, pela Michael
Wiese Productions. No Brasil, a obra -- A Jornada do Escritor –
Estruturas Míticas para Contadores de Histórias e Roteiristas
-- é lançada em 1997 pela Ampersand Editora.
Vogler sugere adaptações importantes. Em primeiro lugar,
ele humaniza o herói, caracterizando-o como o personagem central
da história. Em segundo, estabelece um elenco de co-atores de
inspiração arquetípica, que acompanha o protagonista
em seu desafio. Além disto, simplifica o método para 12
etapas, divididas em três atos:
1. Primeiro Ato: Mundo Comum, Chamado à Aventura, Recusa do Chamado,
Encontro com o Mentor, Travessia do Primeiro Limiar.
2. Segundo Ato: Testes, Aliados e Inimigos, Provação Suprema
e Recompensa.
3. Terceiro Ato: Caminho de Volta, Ressurreição, Retorno
com Elixir.
Em adição, Vogler cria duas novas etapas. Na primeira,
Mundo Comum, contrasta o cotidiano vivido pelo protagonista com a aventura
prestes a começar. Na segunda, Encontro com o Mentor, ressalta
o papel de uma personagem mais experiente, que induz o protagonista
à ação. A etapa Testes, Inimigos e Aliados permite
compreender também outro avanço proposto por Vogler: a
definição clara de seis tipos de personagens secundárias,
ancoradas em modelos arquetípicos. São eles:
1. Mentor: prepara o protagonista para a jornada.
2. Guardião do Limiar: testa se a decisão de transformação
do herói é real.
3. Arauto: anuncia as mudanças.
4. Camaleão: personagem dinâmico que intriga e confunde
o protagonista.
5. Pícaro: une a irreverência às verdades ditas
pelos antigos bufões.
6. Sombra: engloba vilões, inimigos ou antagonistas .
Vogler também simplifica o caminho de volta e cria a etapa Ressurreição,
ponto catártico da história, onde o herói se purifica
da aventura para reingressar no cotidiano.
A adaptação da estrutura mítica para o
jornalismo
No final dos anos 90, o docente e pesquisador Edvaldo Pereira Lima,
do Núcleo de Epistemologia da Escola de Comunicações
e Artes da Universidade de São Paulo, percebe o potencial da
Jornada do Herói como uma ferramenta para a construção
de histórias de vida e a agrega à sua proposta de Jornalismo
Literário Avançado. Com o objetivo de torná-la
mais funcional em termos jornalísticos, Pereira Lima sintetiza
a Jornada em oito etapas (Cotidiano, Recusa, Desafios, Caverna Profunda,
Desafios, Recompensa e Retorno) . O pesquisador sugere um elenco de
co-atores mais definido que o sugerido por Vogler, propondo a terminologia
de Inimigo e Adversários (enquanto o primeiro é a principal
força motriz que testa o herói, os segundos são
competidores que tentam bloquear seu caminho).
Esta presente proposta é o resultado de pesquisa de doutorado
defendida em 2002 pelo Núcleo de Epistemologia da Escola de Comunicações
e Artes da Universidade de São Paulo, sob orientação
do professor doutor Edvaldo Pereira Lima. A tese sugere uma combinação
das estruturas de Campbell, Vogler e Pereira Lima. Ela engloba 12 etapas:
Cotidiano, Chamado à Aventura, Recusa ao Chamado e Travessia
do Primeiro Limiar. Testes, Aliados, Inimigos, Encontro com a Deusa
-- onde o herói enfrenta os desafios do relacionamento amoroso
--, Caverna Oculta, Provação Suprema e Recompensa. Caminho
de Volta, Ressurreição e Retorno com o Elixir.
Segue uma breve descrição das etapas:
1. Cotidiano: apresenta o universo do protagonista, revelando conflitos
que serão evidenciados na narrativa. É uma das etapas
menos trabalhadas nas reportagens.
2. Chamado à aventura: situação que rompe com a
cotidianidade do herói.
3. Recusa do Chamado: parte das pessoas reluta em ingressar na aventura.
O Mentor é uma personagem típica, que orienta sobre os
perigos e desafios da jornada.
4. Travessia do Primeiro Limiar: no limite entre o mundo conhecido e
o desconhecido, só resta à pessoa ter convicção
de que o passo que está tomando é o melhor possível.
Os Guardiões do Limiar – pessoas que advertem o indivíduo
a não ir além dos limites aceitos por aquela sociedade
– são comuns nesta etapa.
5. Testes, aliados, inimigos: tempo de crises, porém de oportunidades
de crescimento. Os co-atores são presença marcante.
6. Caverna Profunda: o protagonista está a um lance do momento
mais crítico da partida (a Provação Suprema), onde
ocorre intenso processo de internalização.
7. Encontro com a Deusa: a assimilação dos atributos do
sexo oposto coloca o herói em contato com os padrões arquetípicos
do masculino e do feminino, que o psicanalista suíço Carl
Gustav Jung batizou respectivamente de animus e anima.
8. Provação Suprema: acontecimento central da narrativa,
onde o herói enfrenta seus maiores medos e vivencia o abandono
de porções obsoletas da personalidade.
9. Recompensa: o objetivo é alcançado. O protagonista,
transformado, amplia seus conhecimentos em dois planos. Ele tem maior
consciência da sua realidade externa (as conexões entre
as coisas) e interna (quem é e como se encaixa nesta conexão).
10. Caminho de Volta: o herói transmite o conhecimento adquirido
à comunidade.
11. Ressurreição: no clímax da história,
ocorre o último e mais perigoso encontro com a morte, provocando
sensação de catarse.
12. Retorno com Elixir: após a experiência, ocorre a reentrada
no mundo cotidiano.
Experimento
Para a elaboração da tese, foi conduzida uma pesquisa
no primeiro semestre de 2001 para avaliar a viabilidade da aplicação
da Jornada do Herói no ensino de graduação em jornalismo.
Dela participaram os 12 alunos da disciplina de Técnicas de Reportagem,
Entrevista e Pesquisa Jornalística III, ministrada na habilitação
em Jornalismo do curso de Comunicação Social da Universidade
de Uberaba, em Minas Gerais.
Conforme aprendiam o método, os integrantes da turma foram convidados
a construir gradativamente uma história de vida. Na oportunidade,
foi transmitido também o método da Biografia Humana, idealizado
pela médica antroposófica brasileira Gudrun Burkard, que
não estará sendo analisado para efeito desta apresentação.
A idade dos entrevistados variou de 17 a 82 anos. As personagens, escolhidas
livremente pelos alunos, denotam o universo provinciano de Uberaba,
uma das principais cidades do Triângulo Mineiro. Capital nacional
do Zebu, a terra de Chico Xavier tem tradição espírita,
pecuária e universitária, o que se reflete nos textos.
As reportagens apresentam infâncias marcadas pela inexistência
de violência e confinamento em apartamentos, comuns nas metrópoles
contemporâneas. A falta de atenção dos pais, uma
das questões atuais das sociedades urbanas, é detectada
apenas num texto, por sinal o do ex-drogado que abre uma casa de recuperação.
A fase da juventude traz histórias dos passeios nas praças
e dos sorvetes tomados com os parceiros. Os casamentos, feitos em idade
jovem, tendem a ser duráveis. O universo dos adultos repercute
orgulho de profissões tão questionadas nas cidades maiores,
como a de policial.
A presença das 12 etapas da Jornada do Herói em cada história
é variável. Em algumas são encontradas várias
delas. Em outras, apenas algumas podem ser detectadas. A irregularidade
pode ser justificada por vários fatores. Um deles é a
apuração junto ao entrevistado, que mostra que a etapa
não foi vivida, passou despercebida ou não foi recordada.
Outro fator é o comprometimento dos alunos com o curso em geral,
com a disciplina e a própria empatia pessoal pelo método.
Há também a questão do talento individual para
a prática da reportagem.
Esta variação subjetiva manifesta-se de forma menos intensa
na ocorrência das etapas. O experimento evidencia claramente que
algumas são encontradas com maior freqüência, como
a do Chamado da Aventura. Para efeito de estudo, foram selecionados
alguns trechos como o do psicólogo Ivandélio Borges dos
Santos, escrito pela irmã Margarida Ribeiro, da ordem das carmelitas:
“Ao terminar o curso (noturno de química industrial),
Ivan queria estudar mais, porém não tinha dinheiro.
Então fui para Brasília servir o exército. Não
encontrei ninguém que me ajudasse – lá é
você com você mesmo. Mas estavam selecionando pessoal
para trabalhar na enfermaria do quartel. Eu tinha uma namorada que
estudava fisioterapia e treinava massagens em mim. Num ímpeto,
levantei a mão e perguntei se massagista servia. Para minha
surpresa, o tenente disse que sim. Acabei prestando as provas para
curso de soldado-enfermeiro e passei. Foi assim que me iniciei na
área de saúde. Em seguida, fiz o curso de psicologia
clínica”.
A etapa Testes, Aliados e Inimigos apresenta igualmente ocorrência
elevada. Visto o ser humano ser gregário, é esperada a
presença de co-atores. O interessante é que a natureza
destes auxiliares pode ser surpreendente, possivelmente em função
do sincretismo típico da cultura brasileira, como ocorre na história
do psicólogo:
“Ele (Ivandélio) tem como mentores seus pais, que sempre
respeitaram as decisões dos filhos. Em particular a mãe,
uma grande amiga. Contudo está atento às lições
trazidas pela natureza. Ivan recorda um dia quando estava roçando
o mato e não percebeu os marimbondos numa moita de malissa,
planta espinhosa. Quando notou o rosto inchado e as mãos cheias
de calos, sentiu que naquele momento os maribondos e os espinhos haviam
se tornado seus grandes mestres. Foi quando disse chega para aquela
realidade. Pegou sua bicicleta e não voltou nem para buscar
suas ferramentas. Como seus grandes ajudantes não foram pessoas,
considera que seus vilões não são indivíduos,
mas a cultura ditatorial que escraviza o homem”.
Ainda sobre a etapa Testes, Aliados e Inimigos, uma surpresa foi a
falta de vilões nas 12 histórias analisadas. O fato pode
ter várias causas. Uma hipótese plausível é
a de apesar de terem sido realizados vários encontros para apurar
as informações, estes podem não ter sido suficientes
para criar empatia entre os alunos e seus entrevistados. Confiança
que permitiria uma abertura maior para contar fatos traumáticos.
Outra possibilidade que não pode ser descartada é a falta
de experiência dos discentes, que se encontravam no terceiro ano
de formação. De qualquer forma, o mais comum é
que o depoimento traga estas personagens de forma difusa. É o
que ocorre na narrativa de Tadeu Luciano Pereira, ex-usuário
de drogas que fundou uma casa de apoio para viciados, escrita por Claudinei
Honório:
“Quando criança eu fazia travessuras para chamar a atenção,
na adolescência acho que resolvi usar drogas para mostrar que
estava com problemas e que precisava dos pais ao meu lado. O fundo
do poço foi atingido aos 18 anos, quando entrou na faculdade
de pedagogia e conheceu gente mais doida que ele, o que incluía
alguns professores da instituição, na época chamada
FIUBE (Faculdades Integradas de Uberaba). Dos 19 aos 20 anos, começa
uma ciranda pelo mundo das drogas que compreende até a manufatura
de crack – que ainda não era popular. Derretíamos
a cocaína numa colher, adicionávamos pitadas de bicarbonato
e dávamos um choque térmico com uma fôrma de gelo.
A substância cristalizava-se e em seguida eles a fumavam. O
skank era feito da mesma forma, só que era utilizado pó
de heroína. Só conseguia assistir as aulas depois de
fumar um baseado. O bom para ele era chegar do fim de semana e dizer
que tinha bebido várias caixas de cerveja e fumado todas”.
A introdução da etapa Encontro com a Deusa, uma iniciativa
deste estudo, se mostrou acertada, dada à ênfase com que
os relacionamentos amorosos são relatados em todas as histórias.
O impacto do encontro com o sexo oposto é variável de
acordo com cada relato. No caso da história de vida de Alexandre,
17 anos, de autoria de Fernanda Siqueira da Silva, a importância
recai sobre a primeira experiência sexual:
“A grande surpresa aconteceu numa festa que o primo de Rodrigo
deu em sua casa, quando eu tinha 15 anos. Lá conheci Patrícia,
que tinha uns 14. Dançamos e bebemos a noite inteira. Na hora
de levá-la em casa, paramos num terreno baldio e fizemos amor.
Foi talvez a maior loucura da minha vida. A adrenalina foi demais.
A descoberta do sexo para nós dois foi inesquecível.
Namoramos mais dois anos. Terminamos porque a relação
ficou desgastada”.
A professora Ana Maria Martins, retratada por Ronay Crisóstomo,
lembra com detalhes o encontro com o futuro marido:
“(...) ouvimos o barulho do portão eletrônico
se abrindo. É o marido chegando. De estatura mediana, Dirceu
está com camisa branca e calça social azul, alinhado
como convém a um ex-militar. Na mão direita traz uma
pasta, na esquerda a chave do carro, um Vectra. Oi, dona Maria! Oi,
bem! A Rona está me entrevistando. Bom, muito bom! Você
tá chique, hein? Ele beija Ana e vai para o quarto. O encontro
entre os dois se deu quando Ana tinha 14 anos, numa apresentação
do coral da igreja, cujo regente era Dirceu. Naquela época
de menina, a gente flertava muito, dando um adeusinho aqui, outro
ali. Eu tinha dado tchau para um rapaz que se chamava Silas. Minha
colega viu e disse: Esse não. Tem outro muito melhor. Vou arrumar
namorado para você, o Dirceu. Eu respondi mais que depressa.
Não quero não. Dirceu é moço para casamento
e eu não quero casar”.
As etapas de Recompensa, Caminho de Volta e Retorno com Elixir também
são detectáveis na maioria dos casos. Nas histórias
citadas da professora, do psicólogo e do ex-usuário de
drogas, o eixo central gira em torno dos benefícios revertidos
à sociedade. Há histórias em que este encerramento
é evidente, ainda que mais simples. É o que acontece com
a dona-de-casa Lázara Maria Boloni Silva, escrita por seu filho,
Leonardo Boloni:
“Lázara viu seus filhos crescerem e ingressarem na faculdade.
Ela se sente orgulhosa de tê-los ajudado a escolher um bom caminho.
Fiz o impossível para encaminhar esses meninos. Até
hoje, que saíram da barra da minha saia, me preocupo com eles.
Acho que, como mãe, nunca deixarei de me preocupar.
O sonho de infância foi realizado. Ter uma casa boa, sempre
bem arrumada. Agora ela quer que o marido pare de viajar para curtir
a aposentadoria ao seu lado. Só falta ver dois de meus filhos
formados, o que deve acontecer no próximo ano. Desejo típico
de uma mãe devotada à vida do marido e dos filhos”.
Mais desafiante é a identificação das etapas da
Caverna Profunda, Provação Suprema e Ressurreição.
No caso da história do psicólogo, a Provação
Suprema – o ponto culminante da jornada – é a descoberta
de que a primeira mulher está com câncer:
“Seu maior desafio, no entanto, foi a doença da primeira
esposa. Eu e Doralice (Alves Franque) vivíamos bem, apesar
de ela ter 16 anos a mais que eu. Ela era uma amigona, devo parte
do que sou a essa mulher. Ela me ensinou a gostar de música
clássica, de ópera, a curtir Vivaldi, Bach. Era intelectual,
tinha um coração grande.
Certo dia, nós fomos a uma cachoeira, o que adorávamos
fazer. Quando chegamos em casa, ela sentiu um pouquinho dor. Tiramos
a radiografia, que acusou câncer. Foi tudo muito rápido.
Petulante, eu pensei que dava conta do negócio. Quando percebi
que estava perdendo a guerra, senti-me impotente. Foi aí que
abri meu coração, revoltando-me contra Deus. Quando
vi que isto não adiantava, rebelei-me comigo, sentindo-me culpado
e incompetente. No final, joguei todas as armas que tinha nas mãos,
me desnudei e disse a Deus:
__ E aí cara, manda! O que eu tenho que aprender com isso?
Nesse dia eu comecei a mudar. Doralice teve câncer no corpo
inteiro e faleceu com apenas 26 quilos. Por mais louco que pareça,
foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida. Consegui ver a manifestação
de Deus naquele ato. Se alguém diz que vê Deus na alegria,
na paz, na harmonia, digo que é moleza. Quero ver ter fé
para vê-Lo nas trevas, na doença, na dor. Se alguém
consegue ver Deus nesta situação, o resto é detalhe.
Eu cresci, evolui, virei gente”.
A dificuldade em apurar estas etapas (Caverna Profunda, Provação
Suprema e Ressurreição) sugere a necessidade de melhor
capacitar os alunos em nível teórico. É provável
que o domínio sobre temas que ampliassem a compreensão
dos alunos sobre os ciclos psicobiológicos humanos seria positivo
para as fases de apuração e redação. Foi
por esta premissa que o método da Biografia Humana foi introduzido
no experimento (o assunto será objeto de outra apresentação).
Conclusão
As múltiplas crises de paradigmas contemporâneas –
que abrangem do plano individual ao coletivo, político, econômico
e ecológico – são inegáveis. Evidentemente,
esse desafio atual reforça o esgotamento do modelo convencional
do jornalismo, abrindo espaço para propostas que contribuam para
o resgate da humanização e do aprofundamento das coberturas
jornalísticas. Como é de se esperar, toda mudança
provoca resistência dos defensores das velhas tradições.
Até porque sua assimilação requer a reavaliação
pela comunidade profissional, que está comprometida com as regras
estabelecidas, os padrões, as concepções, enfim,
os procedimentos testados e aprovados.
É neste contexto de transformações conceituais
que contribuições como a Jornada do Herói se inserem.
A principal conclusão deste trabalho é a de que o uso
do método facilitou aos participantes mapear a história
de vida. A Jornada do Herói faz com que os aprendizes da área
ampliem sua compreensão sobre si mesmo, sobre os seres humanos
e, por extensão, sobre a realidade que os cerca. Ponto relevante
é o de que seu emprego aumentou a autoconfiança dos alunos,
uma vez que eles chegavam munidos de mais informação sobre
as possíveis crises vividas pelo entrevistado.
Decerto a Jornada do Herói não é o único
modelo possível. É apenas uma nova opção
neste cenário. E uma crítica comum aos novos métodos
é a de que as formas empregadas até então são
suficientes para confeccionar uma reportagem. Contudo, tal qual uma
intervenção cirúrgica, há horas nas quais
é preciso um instrumento. Noutras, outro é mais conveniente.
No caso jornalístico, a escolha é feita pela natureza
do procedimento, bem como por uma certa eleição pessoal
do usuário. Baseada nos resultados obtidos pelo experimento conduzido,
o fato é que o emprego da técnica possibilitou o avanço
em perfis onde os recursos convencionais implementados pelos discentes
haviam se esgotado. Portanto, é correto dizer que com a Jornada
do Herói a história de vida pôde ser mais aprofundada
do que se o método não tivesse sido empregado.
Para a realização desta tese de doutorado, foram pesquisadas
outras possibilidades. É o caso se as histórias de vida
feminina possuem características diferenciadas das masculinas.
A indagação deu início aos estudos sobre a Jornada
da Heroína (que será tema de outra apresentação),
que prosseguem agora com novos aportes teóricos e experimentos.
Outro ponto importante é a inclusão de métodos
complementares de captação, como a Biografia Humana, que
foi um dos elementos estudados na referida tese.
A falta de mais trabalhos teóricos sobre temas como perfis, biografias
e livros-reportagem em geral deixa claro que há muitas fronteiras
a serem exploradas. Por isso, o surgimento deste e de outros métodos
que alicercem a construção de histórias de vida
são benéficos não somente para o ensino de graduação
em jornalismo. Eles permitem dar suporte também aos profissionais
da área, que ganham novas plataformas teóricas para melhorar
a qualidade de seus trabalhos.
É certo que se trata de um modelo experimental e que, como tal,
há a necessidade de serem realizadas mais pesquisas. Contudo,
a Jornada do Herói é uma ferramenta valiosa para os comunicadores
sociais, pois permite perceber a realidade complexa das histórias
de vida humanas, formada por uma combinação de alguns
fatos e muitos mistérios.
* A autora, Monica Martinez, é doutora em Ciências da
Comunicação pelo Núcleo de Epistemologia da Escola
de Comunicações e Artes da Universidade de São
Paulo com a tese intitulada “A Jornada do Herói: estrutura
narrativa mítica na construção de histórias
de vida em jornalismo”. Atualmente é professora do COGEAE
da PUC-SP e coordenadora do curso a distância de Livro-reportagem
do curso de Comunicação Social – Habilitação
em Jornalismo da Universidade de Uberaba (MG). É co-autora
de "O Tao entre Nós" (Editora Com-Arte, 1994) e "Os
Econautas - Ecologia e Jornalismo Literário Avançado"
(Editora Fundação Peirópolis, 1996). Em jornalismo,
é editora contribuinte da editoria de saúde e beleza
de diversas revistas de circulação nacional da Editora
Abril e Símbolo, como Nova Beleza, Meu Nenê e Corpo a
Corpo. É também colunista de um site sobre jornalismo
literário (www.jornalite.com.br).
Contatos podem ser feitos pelo e-mail monica_martinez@uol.com.br
ou pelo site jornadadoheroi.hpg.com.br.
Bibliografia
CAMPBELL, J. O herói de mil faces. São Paulo: Pensamento,
1992.
GRINBERG, Luiz Paulo. Jung – O Homem Criativo. São Paulo:
FTD, 1997.
LIMA, E. P. Páginas ampliadas – o Livro-Reportagem como
Extensão do Jornalismo e da Literatura. Campinas/SP: Unicamp,
1993.
__________ e outros. Criatividade e Novas Metodologias. São Paulo:
Fundação Peirópolis, 1998.
LUDUVIG, Monica Martinez. “Jornada do Herói: A Estrutura
Narrativa Mítica na Construção de Histórias
de Vida em Jornalismo”. Tese de Doutorado. São Paulo: ECA/USP,
2002.
MEDINA, C. de Araújo. Entrevista – o Diálogo Possível.
São Paulo: Ática, 1990.
MORIN, E (e outro). A Inteligência da Complexidade. São
Paulo: Peirópolis, 2000.
VOGLER, C. A Jornada do Escritor – Estruturas Míticas para
Contadores de Histórias e Roteiristas. Rio de Janeiro: Ampersand,
1997.
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