Hiroshima

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A bomba atômica matou 100 mil pessoas na cidade japonesa de Hiroshima, em agosto de 1945. Naquele dia, depois de um clarão silencioso, uma torre de poeira e fragmentos de fissão se ergueu no céu de Hiroshima, deixando cair gotas imensas - do tamanho de bolas de gude - da pavorosa mistura.
Um ano depois, a reportagem de John Hersey reconstituía o dia da explosão a partir do depoimento de seis sobreviventes. O texto tomava a edição inteira da revista The New Yorker, uma das mais importantes publicações semanais dos Estados Unidos. O trabalho do repórter alcançou uma repercussão extraordinária.
Sua investigação aliava o rigor da informação jornalística à qualidade de um texto literário. Nascia ali um gênero de jornalismo que estabelecia novos parâmetros para a maneira de relatar os fatos. A narrativa de Hersey dava rosto à catástrofe da bomba: o horror tinha nome, idade e sexo. Ao optar por um texto simples, sem enfatizar emoções, o autor deixou fluir o relato oral de quem realmente viveu a história.
Quarenta anos mais tarde, Hersey voltou a Hiroshima e escreveu o último capítulo da história dos hibakushas - as pessoas atingidas pelos efeitos da bomba. Hiroshima permitiu que o mundo avaliasse o inacreditável poder destrutivo das armas nucleares e a terrível implicação do seu uso.

1. Um clarão silencioso

No dia 6 de agosto de 1945, precisamente às oito e quinze da manhã, hora do Japão, quando a bomba atômica explodiu sobre Hiroshima, a srta. Toshiko Sasaki, funcionária da Fundição de Estanho do Leste da Ásia, acabava de sentar-se a sua mesa, no departamento de pessoal da fábrica, e voltava a cabeça para falar com sua colega da escrivaninha ao lado. Nesse exato momento o dr. Masakazu Fujii se acomodava para ler o Asahi de Osaka no terraço de seu hospital particular, suspenso sobre um dos sete rios deltaicos que cortam Hiroshima; a sra. Hatsuyo Nakamura, viúva de um alfaiate, observava, da janela de sua cozinha, a demolição da casa vizinha, situada num local que a defesa aérea reservara às faixas de contenção de incêndios; o padre Wilhelm Kleinsorge, jesuíta alemão, lia a Stimmen der Zeit, revista da Companhia de Jesus, deitado num catre, no terceiro e último andar da casa da missão de sua ordem; o dr. Terufumi Sasaki, jovem cirurgião, caminhava por um dos corredores do grande e moderno hospital da Cruz Vermelha local, levando uma amostra de sangue para realizar um teste de Wassermann; e o reverendo Kiyoshi Tanimoto, pastor da Igreja Metodista de Hiroshima, parava na porta de um ricaço de Koi, bairro do oeste da cidade, para descarregar um carrinho de mão cheio de coisas que resolvera transferir para ali por temer o maciço ataque dos B-29, que a população aguardava. Uma centena de milhares de pessoas foram mortas pela bomba atômica, e essas seis são algumas das que sobreviveram. Ainda se perguntam por que estão vivas, quando tantos morreram. Cada uma delas atribui sua sobrevivência ao acaso ou a um ato da própria vontade - um passo dado a tempo, uma decisão de entrar em casa, o fato de tomar um bonde e não outro. Agora cada uma delas sabe que no ato de sobreviver viveu uma dúzia de vidas e viu mais mortes do que jamais teria imaginado ver. Na época não sabiam nada disso.
O reverendo Kiyoshi Tanimoto acordou às cinco da manhã. Estava sozinho no presbitério, pois fazia algum tempo que sua esposa e a filha de um ano pernoitavam com uma amiga em Ushida, um bairro da zona norte. De todas as cidades importantes do Japão apenas duas - Kyoto e Hiroshima - ainda não haviam recebido a visita de B-san, sr. B, tratamento que, com um misto de respeito e triste familiaridade, os japoneses dispensavam ao B-29; como todos os seus vizinhos e amigos, o sr. Tanimoto estava quase doente de ansiedade. Ouvira relatos detalhados e inquietantes de bombardeios maciços sobre Kure, Iwakuni, Tokuyama e outras localidades da região; tinha certeza de que logo chegaria a vez de Hiroshima. Na noite anterior havia dormido mal, em função de vários alarmes antiaéreos. Fazia semanas que os alarmes soavam praticamente todas as noites, pois nessa época os B-29 utilizavam o lago Biwa, a nordeste de Hiroshima, como ponto de encontro e, qualquer que fosse o alvo escolhido, sobrevoavam a costa próxima à cidade. A freqüência dos alarmes e a constante abstinência do sr. B com relação a Hiroshima tinham deixado a população extremamente tensa; corriam boatos de que os americanos preparavam algo especial para a cidade.
O sr. Tanimoto era um homem baixinho, sempre disposto a conversar, rir e chorar. Usava o cabelo preto, um tanto longo, repartido ao meio; os ossos frontais salientes, logo acima das sobrancelhas, o bigode minúsculo, a boca e o queixo pequenos lhe conferiam uma estranha aparência de velho e jovem ao mesmo tempo, um ar de menino e no entanto sensato, frágil e no entanto apaixonado. Havia em seus movimentos nervosos e rápidos um controle que sugeria cautela e ponderação. E essas qualidades, ele as demonstrou nos dias de apreensão que precederam o lançamento da bomba. Além de mandar a esposa pernoitar em Ushida, levara todas as coisas portáteis de sua igreja, situada no populoso bairro residencial de Nagaragawa, para uma casa pertencente a um fabricante de raiom em Koi, a uns três quilômetros do centro. Esse industrial, sr. Matsui, oferecera sua propriedade, até então desocupada, a numerosos amigos e conhecidos, para guardarem o que desejassem, a uma distância segura do possível alvo. O reverendo não teve dificuldade para carregar cadeiras, hinários, Bíblias, objetos litúrgicos e registros paroquiais em seu carrinho de mão, porém não conseguiria transportar sozinho o órgão e o piano. Na véspera da explosão, seu amigo Matsuo o ajudara a levar o piano para Koi; em troca ele prometera lhe dar uma mão para salvar os pertences de uma filha. Por isso levantara tão cedo.
Terrivelmente cansado, preparou seu café-da-manhã. O esforço de carregar o piano, a noite insone, as semanas de preocupação e alimentação inadequada, os deveres da paróquia - tudo contribuía para que se julgasse pouco capaz de cumprir as obrigações do novo dia. E havia mais uma coisa: ele estudara teologia no Emory College, em Atlanta, Georgia, tendo se formado em 1940; falava inglês fluentemente, vestia roupas americanas, correspondera-se com muitos amigos americanos até o início da guerra; e, entre indivíduos obsedados pelo medo de estar sendo vigiados - obsessão que talvez compartilhasse -, sentia crescente inquietação. Várias vezes fora interrogado pela polícia e, apenas poucos dias antes, soubera que um influente conhecido seu, o sr. Tanaka, oficial reformado da companhia de navegação Toyo Kisen Kaisha, anticristão, famoso em Hiroshima por sua filantropia ostensiva e notório por sua tirania pessoal, andara contando a todo mundo que não se podia confiar em Tanimoto. Para demonstrar publicamente que era um bom japonês, o pastor assumira a presidência de sua tonarigumi (Associação de Bairro), acrescentando a seus deveres e preocupações a tarefa de organizar a defesa antiaérea de umas vinte famílias.
Naquela manhã, antes das seis horas, ele saiu para ir à casa do sr. Matsuo, onde descobriu que lhes caberia carregar um tansu, um armário grande, cheio de roupas e utensílios domésticos. Os dois amigos se puseram a caminho. O dia estava claro e tão quente que prometia um calor incômodo. Pouco depois o alarme antiaéreo soou por um minuto, prevenindo os cidadãos sobre a aproximação de aeroplanos inimigos, mas indicando apenas um ligeiro grau de perigo, pois, nessa época, soava todas as manhãs, quando surgia no céu um avião meteorológico americano. Os dois homens continuaram conduzindo o carrinho de mão pelas ruas da cidade. Com seu feitio de leque, Hiroshima se concentrava nas seis ilhas formadas pelos sete braços do rio Ota; seus principais bairros comerciais e residenciais, estendendo-se por uma área de uns dez quilômetros quadrados, no centro, abrigavam três quartos da população, que vários programas de evacuação haviam reduzido de 380 mil para cerca de 245 mil. As fábricas e outros bairros residenciais ocupavam a periferia. Ao sul ficavam as docas, um aeroporto e o mar Interior, pontilhado de ilhas. Uma cadeia de montanhas se ergue nos outros três lados do delta. Depois de atravessar o centro comercial, já apinhado de gente, o sr. Tanimoto e o sr. Matsuo cruzaram dois dos rios do estuário e subiram as ladeiras de Koi até os arredores da cidade e o sopé das montanhas. Quando alcançaram o vale, longe do compacto casario, ouviram o sinal de que não havia mais perigo. (Detectando apenas três aviões, os operadores de radar japoneses deduziram que se tratava de uma missão de reconhecimento.) Empurrar o carrinho de mão ladeira acima, até a propriedade do fabricante de raiom, fora cansativo, e, depois de levar sua carga até os degraus da entrada, os dois amigos pararam para descansar um pouco, tendo uma ala da casa entre eles e a cidade. Como ocorria comumente nessa parte do Japão, a casa consistia numa construção de madeira, suportando um pesado telhado. Atulhada de trouxas de roupas, a sala parecia uma caverna fresca, repleta de gordas almofadas. Na frente, à direita da porta, havia um amplo jardim, esmeradamente decorado com pedras. Não se escutava nenhum ruído de avião. A manhã estava silenciosa; o lugar era fresco e agradável.
Então um imenso clarão cortou o céu. O reverendo se lembraria nitidamente de que o clarão partiu do leste em direção ao oeste, da cidade em direção às montanhas. Parecia um naco de sol. Os dois amigos reagiram, apavorados - e tiveram tempo para reagir (pois mais de três quilômetros os separavam do centro da explosão). O sr. Matsuo subiu os degraus da frente, entrou na casa e praticamente se enterrou entre as trouxas de roupa. O sr. Tanimoto deu três ou quatro passos e se jogou entre duas grandes pedras do jardim, agarrando-se firmemente a uma delas. Com o rosto encostado na pedra, não viu o que aconteceu. Sentiu uma pressão repentina, e estilhaços de madeira e de telhas choveram sobre ele. Não ouviu barulho nenhum. (Praticamente ninguém em Hiroshima se lembra de ter escutado qualquer barulho produzido pela bomba. Entretanto, um pescador que estava em sua sampana no mar Interior, perto de Tsuzu - o homem com quem a sogra e a cunhada do pastor moravam - , viu o clarão e ouviu uma tremenda explosão; ele se encontrava a quase 32 quilômetros de Hiroshima, porém o estrondo foi maior do que quando os B-29 bombardearam Iwakuni, a apenas oito quilômetros de distância.)
Quando ousou levantar a cabeça, o sr. Tanimoto constatou que a casa do fabricante de raiom havia desmoronado. Achou que uma bomba a atingira. Nuvens de poeira se erguiam por toda parte, envolvendo-o numa espécie de penumbra. Em pânico, sem pensar que o sr. Matsuo estava sob as ruínas, ele correu para a rua. Então percebeu que o muro de concreto da propriedade havia caído - na direção da casa. A primeira coisa que viu na rua foi um pelotão de soldados que tinham estado cavando a encosta para construir um dos milhares de abrigos em que os japoneses aparentemente pretendiam resistir à invasão, montanha por montanha, vida por vida; os soldados deixaram a escavação, onde estariam protegidos, e o sangue lhes corria da cabeça, do peito e das costas. Estavam mudos e atônitos.
Sob o que parecia uma nuvem de poeira o dia escurecia mais e mais.

Pouco antes da meia-noite, na véspera da explosão, um locutor da rádio local informou que cerca de duzentos B-29 se aproximavam do sul de Honshu e aconselhou os habitantes de Hiroshima a procurar as chamadas "áreas seguras". A sra. Hatsuyo Nakamura, viúva do alfaiate, que morava no bairro de Nobori-cho e desde muito estava acostumada a fazer o que lhe mandassem, acordou seus três filhos - um menino de dez anos, Toshio; uma menina de oito, Yaeko, e outra de cinco, Myeko -, vestiu-os e levou-os para a área militar conhecida como Praça de Armas Leste, no extremo nordeste da cidade. Ali desenrolou algumas esteiras e sobre elas acomodou a prole. As crianças dormiram até as duas horas, mais ou menos, quando despertaram com o ronco dos aviões que sobrevoavam Hiroshima.
Tão logo os aviões se afastaram, a sra. Nakamura deixou a Praça de Armas Leste, junto com seus filhos. Pouco depois das duas e meia entrou em casa e ligou o rádio, que, para seu desânimo, transmitia um novo alerta. Ao ver as crianças tão cansadas, ao pensar no número de caminhadas inúteis que haviam feito até a Praça de Armas Leste nas últimas semanas, ela decidiu não seguir as instruções do locutor. Assim, instalou os meninos em seus colchonetes, no chão, deitou-se às três horas e adormeceu de imediato, mergulhando num sono tão profundo que não acordou quando os aviões sobrevoaram a cidade.
Por volta das sete horas a sirene tocou. A sra. Nakamura despertou, vestiu-se às pressas e correu a consultar o sr. Nakamoto, o presidente da Associação do Bairro, que a aconselhou a ficar em casa, a menos que soasse um alarme urgente - uma série intermitente de toques. Ela acatou o conselho e, depois de colocar uma panela no fogo para cozinhar um pouco de arroz, sentou-se para ler o Chugoku de Hiroshima. Às oito horas ouviu, aliviada, o sinal que indicava o fim do alerta. Escutando os movimentos das crianças, deu a cada uma um punhado de amendoins e lhes ordenou que não se levantassem, pois estavam cansadas com a caminhada noturna. Esperava que elas dormissem novamente, mas de repente o vizinho começou a fazer um barulho infernal, martelando, quebrando, serrando, rachando. Assim como a população de Hiroshima, as autoridades acreditavam num bombardeio iminente e tinham passado a exigir, com ameaças e avisos, a conclusão de largas faixas que, esperava-se, atuassem em conjunto com os rios para conter o fogo provocado por ataques incendiários; e o vizinho estava relutantemente sacrificando sua casa pela segurança da cidade. Na véspera a prefeitura determinara que todas as alunas das escolas secundárias que tivessem condições de trabalhar dedicassem alguns dias à desobstrução dessas áreas, e elas se lançaram à tarefa tão logo soou o sinal de que não havia mais perigo.
A sra. Nakamura voltou para a cozinha, examinou o arroz e se pôs a observar o vizinho. A princípio se aborreceu com o barulho, mas depois se comoveu a tal ponto que quase chorou. Sentiu pena do homem que estava derrubando a casa, tábua por tábua, numa época em que havia por toda parte tanta destruição inevitável; sentiu também uma pena generalizada, comunitária, para não falar na pena de si mesma. Sua situação não era fácil. Seu marido, Isawa, alistara-se no exército logo após o nascimento de Myeko, e durante muito tempo ela ficara sem notícias, até que, em 5 de março de 1942, recebeu um telegrama de sete palavras: "Isawa teve uma morte honrosa em Cingapura". Mais tarde soube que o marido morrera em 5 de fevereiro, dia da queda de Cingapura, e que detinha na época a patente de cabo. Como alfaiate ele não havia prosperado muito, e seu único capital era uma máquina de costura Sankoku. Depois de sua morte, quando parou de receber seus soldos, a viúva sustentou os filhos costurando nessa máquina.
A sra. Nakamura observava o vizinho quando um clarão de um branco intenso, de um branco que nunca tinha visto até então, iluminou todas as coisas. Ela não se importou em saber o que estaria acontecendo com o vizinho; o instinto materno a direcionou para sua prole. No entanto, mal deu um passo (encontrava-se a 1215 metros do centro da explosão), alguma coisa a levantou e a fez voar até o cômodo contíguo, em meio a partes de sua casa.
Quando ela aterrissou, tábuas caíram a seu redor, e uma chuva de telhas a cobriu. Tudo escureceu. A camada de destroços não era muito densa, e a sra. Nakamura se levantou. Ouviu uma das crianças gritar "Mamãe, socorro!" e viu a caçula Myeko, de cinco anos, enterrada até o peito e incapaz de se mexer. Enquanto abria caminho com as mãos, freneticamente, para acudir a menina, não escutou nem avistou o menor sinal dos outros filhos.