Fama e anonimato
Material disponibilizado no site da editora Companhia das Letras (www.companhiadasletras.com.br).
No início dos anos 60, o repórter Gay Talese saiu pela
ruas de Nova York e descobriu uma segunda Estátua da Liberdade,
cuja única função seria confundir os desavisados.
Constatou também que os nova-iorquinos piscavam em média
28 vezes por segundo; que sob chuva o movimento do comércio caía
de 15% a 20%, mas menos gente se matava nesses dias; que um mergulhador
ganhava a vida recuperando objetos perdidos no fundo da baía
de Nova York; que as prostitutas promoviam anualmente um baile em homenagem
aos cafetães da cidade, e que as faxineiras do Empire State encontravam
mais ou menos 5 mil dólares por ano nas 3 mil salas do edifício.
Fama e anonimato está repleto de informações assim:
aparentemente inúteis, mas que, nas mãos de um escritor
de primeira categoria, imprimem a textura real da cidade e o rosto de
seus habitantes. Nas três séries de reportagens reunidas
neste livro - a primeira, sobre o estranho universo urbano que é
Nova York; a segunda, sobre a saga da construção da ponte
Verrazzano-Narrows, e a terceira, sobre artistas e esportistas americanos
-, Talese abriu a picada do que mais tarde seria batizado de "novo
jornalismo" ou jornalismo literário, um tipo de reportagem
que alia um texto de alta qualidade a um olhar que foge aos lugares-comuns.
Foi esse espírito de observação que levou Gay Talese
a escrever um perfil considerado exemplar pela leveza e audácia
com que foi feito: "Frank Sinatra está resfriado".
Nesse texto, incluído na terceira parte do livro, o repórter
faz um retrato certeiro do cantor, sem que tenha conseguido entrevistá-lo.
Publicado no Brasil pela primeira vez em 1973, sob o título Aos
olhos da multidão, o livro se tornou uma raridade disputada em
sebos. Esta nova edição traz dois textos inéditos
em livro, que narram a feitura do perfil de Sinatra e das matérias
sobre a ponte Verrazzano-Narrows, além de um posfácio
do jornalista Humberto Werneck.
Prefácio do autor
A maioria dos textos deste livro se enquadra num tipo de reportagem
que se costuma classificar de "novo jornalismo", "nova
não-ficção" ou "parajornalismo",
sendo a última uma forma pejorativa cunhada pelo falecido crítico
Dwight MacDonald, que tinha lá suas desconfianças em relação
a esse gênero, pois achava, assim como alguns outros críticos,
que seus autores deturpavam os fatos para conseguir um maior efeito
dramático.
Eu não concordo. Embora muitas vezes seja lido como ficção,
o novo jornalismo não é ficção. Ele é,
ou deveria ser, tão fidedigno quanto a mais fidedigna reportagem,
embora busque uma verdade mais ampla que a obtida pela mera compilação
de fatos passíveis de verificação, pelo uso de
aspas e observância dos rígidos princípios organizacionais
à moda antiga. O novo jornalismo permite, na verdade exige, uma
abordagem mais imaginativa da reportagem, possibilitando ao autor inserir-se
na narrativa se assim o desejar, como fazem muitos escritores, ou assumir
o papel de um observador neutro, como outros preferem, inclusive eu
próprio.
Eu procuro seguir os objetos de minha reportagem de forma discreta,
observando-os em situações reveladoras, atentando para
suas reações e para as reações dos outros
diante deles. Tento apreender a cena em sua inteireza, o diálogo
e o clima, a tensão, o drama, o conflito, e então em geral
a escrevo do ponto de vista da pessoa retratada, às vezes revelando
o que esses indivíduos pensam durante os momentos que descrevo.
Esse tipo de insight depende, naturalmente, da cooperação
total da pessoa sobre a qual se escreve, mas se o escritor goza de sua
confiança, é possível, por meio de entrevistas,
fazendo as perguntas certas nas horas certas, aprender e reportar o
que se passa na mente de outras pessoas.
Recorri muito a essa técnica em meus quatro últimos livros,
inclusive A mulher do próximo; este, publicado em 1980, descreve
a vida sexual privada e os valores morais cambiantes de muitos casais
americanos na era "liberada" de antes da aids. E em 1990 meu
interesse jornalístico pela esfera da intimidade fez com que
eu me afastasse de meu papel de "observador neutro", e me
surpreendi invadindo minha própria privacidade e a de meus antepassados
estrangeiros, em meu livro Unto the sons, publicado há pouco
tempo.
Mas relendo Unto the sons agora, em 1992, notei que ele contém
numerosas observações, e mesmo frases, que foram publicadas
pela primeira vez nos idos da década de 60, quando eu estava
envolvido com o livro que o leitor tem nas mãos, Fama e anonimato.
E embora Fama e anonimato não chegue a pôr em prática
tudo que creio ser possível na não-ficção
criativa, com certeza marca a passagem do "velho" jornalismo
que eu praticava no New York Times na década de 50 para o estilo
de reportagem mais livre e mais desafiador que a revista Esquire aceitava
e estimulava, sob a editoria do falecido Harold Hayes.
Comecei a escrever na Esquire em 1960, com um ensaio sobre as pessoas
anônimas de Nova York, uma série de vinhetas sobre as pessoas
que ninguém vê, fatos estranhos e acontecimentos bizarros
que me seduziram durante minhas andanças pela cidade como jornalista.
Quando a Esquire publicou o ensaio, eu o ampliei para produzir um livro
ilustrado que a Harper & Row lançou em 1961, com o título
de New York - A serendipiter's journey [Nova York - A jornada de um
serendipitoso]. O texto desse livro constitui a primeira parte desta
edição de Fama e anonimato; para mim, agora ele representa
minha visão juvenil de Nova York, dinamizada por uma mistura
de admiração e espanto, e me lembra também de quão
destrutiva uma cidade pode se tornar, quanto ela promete muito mais
do que pode cumprir, e de como estava certo E. B. White quando escreveu,
muitos anos atrás: "Ninguém deve vir morar em Nova
York a menos que esteja disposto a ter muita sorte". Há
também nesses escritos os primeiros sinais de meu interesse pelo
uso de técnicas de ficção, um desejo, de certa
forma, de dar à reportagem o tom que Irwin Shaw e John O'Hara
deram ao conto.
Na segunda parte de Fama e anonimato, chamada "A ponte", minha
escrita é menos difusa, porque me concentrei, meses a fio, num
grupo de homens extraordinários que começaram a trabalhar
em Nova York, em 1961, na construção da grande ponte Verrazano-Narrows,
entre Staten Island e o Brooklyn. Entre 1961 e 1964 passei todo o tempo
que me foi possível no canteiro de obras da ponte, não
apenas visitando os barracões dos operários de ambos os
lados do rio Hudson, mas também muitas vezes pondo um capacete
e misturando-me aos homens nas vigas de aço e nos cabos que se
estendiam cerca de 180 metros acima do mar. Muitos desses operários
de pés firmes eram índios da reserva de Caughnawaga, perto
de Montreal, e vez por outra eu os acompanhei nas visitas que faziam
a suas famílias nos fins de semana, achando as viagens de carro,
com motoristas encharcados de uísque, muito mais assustadoras
que minhas andanças nas alturas, nas estreitas vigas da ponte,
em dias de mais vento. Nunca vou esquecer as ocasiões em que
vi nosso carro sair da estrada e atingir de raspão renques de
sequóias e, uma vez, um cervo saltitante que fez um pequeno estrago.
Essas excursões acabaram para mim em 1964, com a publicação,
pela Harper & Row, do livro ilustrado The bridge, texto que é
reproduzido nesta edição de Fama e anonimato tal qual
foi escrito; assim sendo, a linguagem que nele se encontra nem sempre
é "politicamente correta", segundo o jargão
desta década de 90: não transformei meus índios
em "americanos nativos" nem impliquei com meus personagens
masculinos que assobiavam para belas "garotas" e não
para "jovens mulheres"; tampouco atualizei as minhas cifras,
mesmo se minha definição de "abundância"
hoje em dia se reduz à linha de pobreza.
A terceira parte de Fama e anonimato se concentra nos sonhos e nas aspirações
declinantes de muita gente bastante familiarizada com o errático
vaivém dos holofotes da fama - pessoas como o cantor Frank Sinatra,
a lenda do beisebol Joe DiMaggio, o ex-campeão de boxe Floyd
Patterson, o ator Peter O'Toole, as garotas da capa da Vogue, a personalidade
literária George Plimpton e o que um agente chamou de "gangue
nova-iorquina de East Side" de Plimpton - estes e vários
outros temas da terceira parte são apresentados num estilo que
se aproxima bastante da invejável e aparentemente fácil
leveza de meus contistas preferidos.
Um dos primeiros exemplos desse estilo é o perfil que fiz para
a Esquire em 1962, de Joe Louis, um pugilista que, embora afastado do
boxe, insiste em lutar; a matéria começa com o cinqüentão
Louis, cansado de três dias e noites de diversão em Nova
York com algumas fãs, desembarcando no aeroporto de Los Angeles,
onde é recebido por sua terceira mulher, uma advogada - uma cena
em que eles se desentendem, com diálogos que parecem ter sido
inspirados pela cena de rua entre marido e esposa do conto "Girls
in their summer dresses", de Irwin Shaw.
Em meu perfil do diretor teatral Joshua Logan ("A psique sensível
de Joshua Logan"), eu estava no teatro certa tarde assistindo Logan
ensaiar sua peça quando, de repente, ele e a atriz principal,
Claudia McNeil, entraram numa discussão que, além de assumir
um tom mais dramático que a própria peça, revelava
algo do caráter de Logan e de McNeil que eu não poderia
ter apreendido se tivesse adotado um estilo de reportagem mais convencional.
Quando estava pesquisando para traçar o perfil de Frank Sinatra
("Frank Sinatra está resfriado") descobri que a cooperação
- ou a falta dela - por parte da pessoa a ser retratada não importa
muito, desde que o escritor possa acompanhar seus movimentos, ainda
que à distância. Durante o tempo que passei em Los Angeles,
Sinatra não se dispôs a cooperar. Eu cheguei num momento
muito ruim para Sinatra, pois ele padecia de um resfriado e de muitos
outros incômodos, e não consegui a entrevista que me havia
sido prometida. Mesmo assim, pude observá-lo durante as seis
semanas que passei fazendo a pesquisa, assistindo a sessões de
gravação em estúdio, vendo-o no set de filmagem,
nas mesas de jogo de Las Vegas, e testemunhei suas mudanças de
humor, sua irritação e desconfiança quando achava
que eu estava me aproximando demais, e seu prazer e gentileza quando,
cercado de gente de sua confiança, conseguia relaxar. Foi mais
proveitoso observá-lo, ouvir as suas conversas, estudar a reação
das pessoas à sua volta do que me sentar e conversar com ele,
caso tivesse me concedido a entrevista.
Joe DiMaggio ("O outono de um herói") se mostrou ainda
mais relutante, no início de minha pesquisa sobre ele em San
Francisco, em 1965. Eu conhecera DiMaggio seis meses antes, em Nova
York, e na ocasião ele tinha prometido cooperar.
Mas sua atitude mudou radicalmente quando cheguei à porta de
seu restaurante em Fisherman's Wharf, em San Francisco. Ainda assim,
o modo tenso e irritado como ele me recebeu em San Francisco me valeu
uma interessante cena de abertura que não apenas testemunhei
mas da qual participei, sendo expulso do local pelo próprio DiMaggio.
Consegui me reaproximar dele alguns dias depois porque lhe pedi, por
intermédio de um amigo seu, também parceiro de golfe,
que me permitisse acompanhar as duas duplas de jogadores em sua volta
pelos dezoito buracos. Durante a partida de golfe, DiMaggio, que odeia
perder bolas de golfe, perdeu três. Eu as encontrei. A partir
daí sua atitude com relação a mim mudou sensivelmente;
fui convidado a assistir a outras partidas de golfe e a acompanhá-lo
num encontro com outros amigos no Reno's, um bar em San Francisco onde
fiz boa parte do trabalho.
Exceto uma ou outra mudança de palavras, como as que fiz visando
recuperar as obscenidades pitorescas de Peter O'Toole, amenizadas pelos
editores da Esquire, não atualizei nenhum dos textos deste livro.
Eles se apresentam simplesmente como uma coletânea de meus primeiros
trabalhos; não obstante, como já disse, existe uma relação
entre estes trabalhos e os que eu viria a desenvolver em meus livros
mais conhecidos. Os textos sobre Joe DiMaggio, Frank Sinatra e também
o que trata do gângster Frank Costello ("A ética étnica
de Frank Costello") contêm temas que aprofundei mais tarde
em meu livro sobre a máfia - Honrados mafiosos. Esse material
é retomado e desenvolvido de forma diferente e pessoal em meu
livro mais recente, acima mencionado, Unto the sons, há pouco
publicado pela Ivy em brochura. O último perfil de Fama e anonimato
("Sr. Má Notícia") descreve a vida de um obscuro
jornalista especializado na redação de obituários,
que conheci à época em que eu trabalhava na editoria de
Notícias Locais do New York Times. Escrevi sobre ele para a Esquire,
e aquela foi a primeira vez que descrevi um colega de jornalismo para
os leitores de todo o país; quatro anos depois, em 1969, continuei
com uma galeria desses colegas num livro sobre o New York Times que
se tornou meu primeiro best-seller, O reino e o poder. A mulher do próximo
nasceu de minha curiosidade pelos "maus pensamentos" e pelos
pecados sexuais de que as freiras da minha escola paroquial e o vigário
não paravam de falar durante toda a minha infância - infância
que retomei em Unto the sons.
E por aí vai. As obsessões de um escritor vêm à
tona e voltam a aflorar numa espiral imprevisível; as técnicas
evoluem, mas a imaginação permanece.
Gay Talese
Agosto de 1992
PARTE I
NOVA YORK
A JORNADA DE UM SERENDIPITOSO
Nova York é uma cidade de coisas que passam despercebidas
Nova York é uma cidade de coisas que passam despercebidas. É
uma cidade que tem gatos dormindo debaixo dos carros, dois tatus de
pedra que escalam a catedral de St. Patrick e milhares de formigas que
rastejam no alto do Empire State Building. As formigas provavelmente
foram levadas para lá pelo vento ou pelos pássaros, mas
ninguém sabe ao certo; ninguém em Nova York sabe mais
sobre as formigas do que sobre o mendigo que toma táxis para
o Bowery; ou sobre o homem alinhado que retira lixo dos latões
da Sixth Avenue; ou sobre o médium das imediações
da West Seventy Street que afirma: "Sou clarividente, clariaudiente
e clari-sensorial".
Nova York é uma cidade para excêntricos e uma central de
pequenas curiosidades. Os nova-iorquinos piscam 28 vezes por minuto,
quarenta quando estão tensos. A maioria das pessoas que comem
pipoca no Yankee Stadium pára de mastigar por um instante, pouco
antes de um jogador fazer um arremesso. As pessoas que mascam chicletes
nas escadas rolantes da Macy's param de mascar por um instante, logo
antes de descer - para se concentrar no último degrau. Os funcionários
que limpam o tanque dos leões-marinhos do zoológico do
Bronx costumam encontrar moedas, clipes de papel, canetas esferográficas
e bolsinhas de meninas.
Todo dia os nova-iorquinos enxugam 1,74 milhão de litros de cerveja,
devoram 1,5 mil toneladas de carne e passam 34 quilômetros de
fio dental entre os dentes. Todo dia morrem cerca de 250 pessoas em
Nova York, nascem 460, e 150 mil andam pela cidade com olhos de vidro.
Um porteiro da Park Avenue tem três fragmentos de bala na cabeça
- que estão lá desde a Primeira Guerra Mundial. Muitas
jovens filhas de ciganos, influenciadas pela televisão e pelas
leituras, fogem de casa porque não querem crescer e virar cartomantes.
Todo mês, quinhentos quilos de cabelo são entregues a Louis
Feder, no número 545 da Fifth Avenue, onde se confeccionam perucas
loiras com cabelos de mulheres alemãs e perucas morenas com cabelos
de francesas e italianas. Não se fazem perucas com cabelos de
americanas, diz o sr. Feder, porque são muito fracos devido ao
excesso de lavagens e permanentes.
Alguns dos homens mais bem informados de Nova York são ascensoristas,
que raramente falam, mas sempre escutam - da mesma forma que os porteiros.
O porteiro do Sardi's ouve os comentários dos espectadores das
estréias, que passam pelo bar depois do último ato. Ele
ouve de perto. Atentamente. Dez minutos depois de cair o pano, ele é
capaz de dizer quais espetáculos serão um fracasso e quais
serão um sucesso.
Na Broadway, ao anoitecer, pára um grande Rolls-Royce 1948 preto
- e dele sai uma senhora baixinha, munida de uma Bíblia e de
um cartaz em que se lê "Os condenados perecerão".
Ela se dirige a uma esquina, onde fica bradando às multidões
de pecadores da Broadway até as três da manhã, quando
então o Rolls-Royce a leva de volta a Westchester. A essa altura
a Fifth Avenue está praticamente vazia, exceto por uns poucos
caminhantes insones, um ou outro taxista procurando clientes, e um grupo
de mulheres sofisticadas que fica nas vitrines noite e dia, exibindo
sorrisos frios e perfeitos - compostos de lábios de argila, olhos
de vidro e rostos que não deixarão de brilhar enquanto
a pintura não perder a cor. Como sentinelas, elas se enfileiram
na Fifth Avenue - esses manequins de vitrine, que fitam a rua silenciosa,
cabeças inclinadas, dedos dos pés delgados, e nas mãos
compridos dedos de borracha estendendo-se para pegar cigarros inexistentes.
Às quatro da manhã, algumas vitrines se tornam um estranho
reino encantado, de deusas magricelas, todas paralisadas, prestes a
correr para uma festa, mergulhar numa piscina ou flutuar em direção
ao céu num vaporoso robe azul.
Essa ilusão fantástica se deve, em parte, a uma imaginação
delirante, mas também à incrível capacidade dos
fabricantes de manequins, que os dotaram de certos traços individuais
- partindo do princípio de que não existem duas mulheres
totalmente iguais, nem mesmo de plástico ou de gesso. O resultado
é que os manequins da Peck & Peck são feitos para
parecerem jovens e esbeltos, enquanto os da Lord & Taylor têm
ar mais grave e cabelo curto, penteado para a frente. Na Saks eles são
tímidos porém maduros, ao passo que na Bergdorf's possuem
uma elegância sem idade e dão a impressão de serena
opulência. Os perfis dos manequins da Fifth Avenue foram modelados
a partir das mulheres mais encantadoras do mundo - mulheres como Suzy
Parker, que posou para a empresa Best & Co., e Brigitte Bardot,
que serviu de inspiração para alguns manequins da Saks.
A preocupação em fazer manequins quase humanos, dotando-os
de curvas, talvez seja responsável pelo estranho fascínio
que muitos nova-iorquinos têm por essas virgens sintéticas.
É por isso que alguns vitrinistas muitas vezes conversam com
manequins e lhes dão apelidos, e que os manequins nus nas vitrines
sempre atraem os homens, enojam as mulheres e foram proibidos na cidade
de Nova York. Isso explica por que alguns manequins são atacados
por tarados, e por que o esbelto manequim de uma loja de White Plains
foi encontrado no porão, pouco tempo atrás, com as roupas
rasgadas, a pintura manchada e o corpo apresentando marcas de uma tentativa
de estupro. Certa noite a polícia montou uma armadilha e pegou
o agressor - um homenzinho tímido: o porteiro.
Prefácio do autor
A maioria dos textos deste livro se enquadra num tipo de reportagem
que se costuma classificar de "novo jornalismo", "nova
não-ficção" ou "parajornalismo",
sendo a última uma forma pejorativa cunhada pelo falecido crítico
Dwight MacDonald, que tinha lá suas desconfianças em relação
a esse gênero, pois achava, assim como alguns outros críticos,
que seus autores deturpavam os fatos para conseguir um maior efeito
dramático.
Eu não concordo. Embora muitas vezes seja lido como ficção,
o novo jornalismo não é ficção. Ele é,
ou deveria ser, tão fidedigno quanto a mais fidedigna reportagem,
embora busque uma verdade mais ampla que a obtida pela mera compilação
de fatos passíveis de verificação, pelo uso de
aspas e observância dos rígidos princípios organizacionais
à moda antiga. O novo jornalismo permite, na verdade exige, uma
abordagem mais imaginativa da reportagem, possibilitando ao autor inserir-se
na narrativa se assim o desejar, como fazem muitos escritores, ou assumir
o papel de um observador neutro, como outros preferem, inclusive eu
próprio.
Eu procuro seguir os objetos de minha reportagem de forma discreta,
observando-os em situações reveladoras, atentando para
suas reações e para as reações dos outros
diante deles. Tento apreender a cena em sua inteireza, o diálogo
e o clima, a tensão, o drama, o conflito, e então em geral
a escrevo do ponto de vista da pessoa retratada, às vezes revelando
o que esses indivíduos pensam durante os momentos que descrevo.
Esse tipo de insight depende, naturalmente, da cooperação
total da pessoa sobre a qual se escreve, mas se o escritor goza de sua
confiança, é possível, por meio de entrevistas,
fazendo as perguntas certas nas horas certas, aprender e reportar o
que se passa na mente de outras pessoas.
Recorri muito a essa técnica em meus quatro últimos livros,
inclusive A mulher do próximo; este, publicado em 1980, descreve
a vida sexual privada e os valores morais cambiantes de muitos casais
americanos na era "liberada" de antes da aids. E em 1990 meu
interesse jornalístico pela esfera da intimidade fez com que
eu me afastasse de meu papel de "observador neutro", e me
surpreendi invadindo minha própria privacidade e a de meus antepassados
estrangeiros, em meu livro Unto the sons, publicado há pouco
tempo.
Mas relendo Unto the sons agora, em 1992, notei que ele contém
numerosas observações, e mesmo frases, que foram publicadas
pela primeira vez nos idos da década de 60, quando eu estava
envolvido com o livro que o leitor tem nas mãos, Fama e anonimato.
E embora Fama e anonimato não chegue a pôr em prática
tudo que creio ser possível na não-ficção
criativa, com certeza marca a passagem do "velho" jornalismo
que eu praticava no New York Times na década de 50 para o estilo
de reportagem mais livre e mais desafiador que a revista Esquire aceitava
e estimulava, sob a editoria do falecido Harold Hayes.
Comecei a escrever na Esquire em 1960, com um ensaio sobre as pessoas
anônimas de Nova York, uma série de vinhetas sobre as pessoas
que ninguém vê, fatos estranhos e acontecimentos bizarros
que me seduziram durante minhas andanças pela cidade como jornalista.
Quando a Esquire publicou o ensaio, eu o ampliei para produzir um livro
ilustrado que a Harper & Row lançou em 1961, com o título
de New York - A serendipiter's journey [Nova York - A jornada de um
serendipitoso]. O texto desse livro constitui a primeira parte desta
edição de Fama e anonimato; para mim, agora ele representa
minha visão juvenil de Nova York, dinamizada por uma mistura
de admiração e espanto, e me lembra também de quão
destrutiva uma cidade pode se tornar, quanto ela promete muito mais
do que pode cumprir, e de como estava certo E. B. White quando escreveu,
muitos anos atrás: "Ninguém deve vir morar em Nova
York a menos que esteja disposto a ter muita sorte". Há
também nesses escritos os primeiros sinais de meu interesse pelo
uso de técnicas de ficção, um desejo, de certa
forma, de dar à reportagem o tom que Irwin Shaw e John O'Hara
deram ao conto.
Na segunda parte de Fama e anonimato, chamada "A ponte", minha
escrita é menos difusa, porque me concentrei, meses a fio, num
grupo de homens extraordinários que começaram a trabalhar
em Nova York, em 1961, na construção da grande ponte Verrazano-Narrows,
entre Staten Island e o Brooklyn. Entre 1961 e 1964 passei todo o tempo
que me foi possível no canteiro de obras da ponte, não
apenas visitando os barracões dos operários de ambos os
lados do rio Hudson, mas também muitas vezes pondo um capacete
e misturando-me aos homens nas vigas de aço e nos cabos que se
estendiam cerca de 180 metros acima do mar. Muitos desses operários
de pés firmes eram índios da reserva de Caughnawaga, perto
de Montreal, e vez por outra eu os acompanhei nas visitas que faziam
a suas famílias nos fins de semana, achando as viagens de carro,
com motoristas encharcados de uísque, muito mais assustadoras
que minhas andanças nas alturas, nas estreitas vigas da ponte,
em dias de mais vento. Nunca vou esquecer as ocasiões em que
vi nosso carro sair da estrada e atingir de raspão renques de
sequóias e, uma vez, um cervo saltitante que fez um pequeno estrago.
Essas excursões acabaram para mim em 1964, com a publicação,
pela Harper & Row, do livro ilustrado The bridge, texto que é
reproduzido nesta edição de Fama e anonimato tal qual
foi escrito; assim sendo, a linguagem que nele se encontra nem sempre
é "politicamente correta", segundo o jargão
desta década de 90: não transformei meus índios
em "americanos nativos" nem impliquei com meus personagens
masculinos que assobiavam para belas "garotas" e não
para "jovens mulheres"; tampouco atualizei as minhas cifras,
mesmo se minha definição de "abundância"
hoje em dia se reduz à linha de pobreza.
A terceira parte de Fama e anonimato se concentra nos sonhos e nas aspirações
declinantes de muita gente bastante familiarizada com o errático
vaivém dos holofotes da fama - pessoas como o cantor Frank Sinatra,
a lenda do beisebol Joe DiMaggio, o ex-campeão de boxe Floyd
Patterson, o ator Peter O'Toole, as garotas da capa da Vogue, a personalidade
literária George Plimpton e o que um agente chamou de "gangue
nova-iorquina de East Side" de Plimpton - estes e vários
outros temas da terceira parte são apresentados num estilo que
se aproxima bastante da invejável e aparentemente fácil
leveza de meus contistas preferidos.
Um dos primeiros exemplos desse estilo é o perfil que fiz para
a Esquire em 1962, de Joe Louis, um pugilista que, embora afastado do
boxe, insiste em lutar; a matéria começa com o cinqüentão
Louis, cansado de três dias e noites de diversão em Nova
York com algumas fãs, desembarcando no aeroporto de Los Angeles,
onde é recebido por sua terceira mulher, uma advogada - uma cena
em que eles se desentendem, com diálogos que parecem ter sido
inspirados pela cena de rua entre marido e esposa do conto "Girls
in their summer dresses", de Irwin Shaw.
Em meu perfil do diretor teatral Joshua Logan ("A psique sensível
de Joshua Logan"), eu estava no teatro certa tarde assistindo Logan
ensaiar sua peça quando, de repente, ele e a atriz principal,
Claudia McNeil, entraram numa discussão que, além de assumir
um tom mais dramático que a própria peça, revelava
algo do caráter de Logan e de McNeil que eu não poderia
ter apreendido se tivesse adotado um estilo de reportagem mais convencional.
Quando estava pesquisando para traçar o perfil de Frank Sinatra
("Frank Sinatra está resfriado") descobri que a cooperação
- ou a falta dela - por parte da pessoa a ser retratada não importa
muito, desde que o escritor possa acompanhar seus movimentos, ainda
que à distância. Durante o tempo que passei em Los Angeles,
Sinatra não se dispôs a cooperar. Eu cheguei num momento
muito ruim para Sinatra, pois ele padecia de um resfriado e de muitos
outros incômodos, e não consegui a entrevista que me havia
sido prometida. Mesmo assim, pude observá-lo durante as seis
semanas que passei fazendo a pesquisa, assistindo a sessões de
gravação em estúdio, vendo-o no set de filmagem,
nas mesas de jogo de Las Vegas, e testemunhei suas mudanças de
humor, sua irritação e desconfiança quando achava
que eu estava me aproximando demais, e seu prazer e gentileza quando,
cercado de gente de sua confiança, conseguia relaxar. Foi mais
proveitoso observá-lo, ouvir as suas conversas, estudar a reação
das pessoas à sua volta do que me sentar e conversar com ele,
caso tivesse me concedido a entrevista.
Joe DiMaggio ("O outono de um herói") se mostrou ainda
mais relutante, no início de minha pesquisa sobre ele em San
Francisco, em 1965. Eu conhecera DiMaggio seis meses antes, em Nova
York, e na ocasião ele tinha prometido cooperar.
Mas sua atitude mudou radicalmente quando cheguei à porta de
seu restaurante em Fisherman's Wharf, em San Francisco. Ainda assim,
o modo tenso e irritado como ele me recebeu em San Francisco me valeu
uma interessante cena de abertura que não apenas testemunhei
mas da qual participei, sendo expulso do local pelo próprio DiMaggio.
Consegui me reaproximar dele alguns dias depois porque lhe pedi, por
intermédio de um amigo seu, também parceiro de golfe,
que me permitisse acompanhar as duas duplas de jogadores em sua volta
pelos dezoito buracos. Durante a partida de golfe, DiMaggio, que odeia
perder bolas de golfe, perdeu três. Eu as encontrei. A partir
daí sua atitude com relação a mim mudou sensivelmente;
fui convidado a assistir a outras partidas de golfe e a acompanhá-lo
num encontro com outros amigos no Reno's, um bar em San Francisco onde
fiz boa parte do trabalho.
Exceto uma ou outra mudança de palavras, como as que fiz visando
recuperar as obscenidades pitorescas de Peter O'Toole, amenizadas pelos
editores da Esquire, não atualizei nenhum dos textos deste livro.
Eles se apresentam simplesmente como uma coletânea de meus primeiros
trabalhos; não obstante, como já disse, existe uma relação
entre estes trabalhos e os que eu viria a desenvolver em meus livros
mais conhecidos. Os textos sobre Joe DiMaggio, Frank Sinatra e também
o que trata do gângster Frank Costello ("A ética étnica
de Frank Costello") contêm temas que aprofundei mais tarde
em meu livro sobre a máfia - Honrados mafiosos. Esse material
é retomado e desenvolvido de forma diferente e pessoal em meu
livro mais recente, acima mencionado, Unto the sons, há pouco
publicado pela Ivy em brochura. O último perfil de Fama e anonimato
("Sr. Má Notícia") descreve a vida de um obscuro
jornalista especializado na redação de obituários,
que conheci à época em que eu trabalhava na editoria de
Notícias Locais do New York Times. Escrevi sobre ele para a Esquire,
e aquela foi a primeira vez que descrevi um colega de jornalismo para
os leitores de todo o país; quatro anos depois, em 1969, continuei
com uma galeria desses colegas num livro sobre o New York Times que
se tornou meu primeiro best-seller, O reino e o poder. A mulher do próximo
nasceu de minha curiosidade pelos "maus pensamentos" e pelos
pecados sexuais de que as freiras da minha escola paroquial e o vigário
não paravam de falar durante toda a minha infância - infância
que retomei em Unto the sons.
E por aí vai. As obsessões de um escritor vêm à
tona e voltam a aflorar numa espiral imprevisível; as técnicas
evoluem, mas a imaginação permanece.
Gay Talese
Agosto de 1992
PARTE I
NOVA YORK
A JORNADA DE UM SERENDIPITOSO
Nova York é uma cidade de coisas que passam despercebidas
Nova York é uma cidade de coisas que passam despercebidas. É
uma cidade que tem gatos dormindo debaixo dos carros, dois tatus de
pedra que escalam a catedral de St. Patrick e milhares de formigas que
rastejam no alto do Empire State Building. As formigas provavelmente
foram levadas para lá pelo vento ou pelos pássaros, mas
ninguém sabe ao certo; ninguém em Nova York sabe mais
sobre as formigas do que sobre o mendigo que toma táxis para
o Bowery; ou sobre o homem alinhado que retira lixo dos latões
da Sixth Avenue; ou sobre o médium das imediações
da West Seventy Street que afirma: "Sou clarividente, clariaudiente
e clari-sensorial".
Nova York é uma cidade para excêntricos e uma central de
pequenas curiosidades. Os nova-iorquinos piscam 28 vezes por minuto,
quarenta quando estão tensos. A maioria das pessoas que comem
pipoca no Yankee Stadium pára de mastigar por um instante, pouco
antes de um jogador fazer um arremesso. As pessoas que mascam chicletes
nas escadas rolantes da Macy's param de mascar por um instante, logo
antes de descer - para se concentrar no último degrau. Os funcionários
que limpam o tanque dos leões-marinhos do zoológico do
Bronx costumam encontrar moedas, clipes de papel, canetas esferográficas
e bolsinhas de meninas.
Todo dia os nova-iorquinos enxugam 1,74 milhão de litros de cerveja,
devoram 1,5 mil toneladas de carne e passam 34 quilômetros de
fio dental entre os dentes. Todo dia morrem cerca de 250 pessoas em
Nova York, nascem 460, e 150 mil andam pela cidade com olhos de vidro.
Um porteiro da Park Avenue tem três fragmentos de bala na cabeça
- que estão lá desde a Primeira Guerra Mundial. Muitas
jovens filhas de ciganos, influenciadas pela televisão e pelas
leituras, fogem de casa porque não querem crescer e virar cartomantes.
Todo mês, quinhentos quilos de cabelo são entregues a Louis
Feder, no número 545 da Fifth Avenue, onde se confeccionam perucas
loiras com cabelos de mulheres alemãs e perucas morenas com cabelos
de francesas e italianas. Não se fazem perucas com cabelos de
americanas, diz o sr. Feder, porque são muito fracos devido ao
excesso de lavagens e permanentes.
Alguns dos homens mais bem informados de Nova York são ascensoristas,
que raramente falam, mas sempre escutam - da mesma forma que os porteiros.
O porteiro do Sardi's ouve os comentários dos espectadores das
estréias, que passam pelo bar depois do último ato. Ele
ouve de perto. Atentamente. Dez minutos depois de cair o pano, ele é
capaz de dizer quais espetáculos serão um fracasso e quais
serão um sucesso.
Na Broadway, ao anoitecer, pára um grande Rolls-Royce 1948 preto
- e dele sai uma senhora baixinha, munida de uma Bíblia e de
um cartaz em que se lê "Os condenados perecerão".
Ela se dirige a uma esquina, onde fica bradando às multidões
de pecadores da Broadway até as três da manhã, quando
então o Rolls-Royce a leva de volta a Westchester. A essa altura
a Fifth Avenue está praticamente vazia, exceto por uns poucos
caminhantes insones, um ou outro taxista procurando clientes, e um grupo
de mulheres sofisticadas que fica nas vitrines noite e dia, exibindo
sorrisos frios e perfeitos - compostos de lábios de argila, olhos
de vidro e rostos que não deixarão de brilhar enquanto
a pintura não perder a cor. Como sentinelas, elas se enfileiram
na Fifth Avenue - esses manequins de vitrine, que fitam a rua silenciosa,
cabeças inclinadas, dedos dos pés delgados, e nas mãos
compridos dedos de borracha estendendo-se para pegar cigarros inexistentes.
Às quatro da manhã, algumas vitrines se tornam um estranho
reino encantado, de deusas magricelas, todas paralisadas, prestes a
correr para uma festa, mergulhar numa piscina ou flutuar em direção
ao céu num vaporoso robe azul.
Essa ilusão fantástica se deve, em parte, a uma imaginação
delirante, mas também à incrível capacidade dos
fabricantes de manequins, que os dotaram de certos traços individuais
- partindo do princípio de que não existem duas mulheres
totalmente iguais, nem mesmo de plástico ou de gesso. O resultado
é que os manequins da Peck & Peck são feitos para
parecerem jovens e esbeltos, enquanto os da Lord & Taylor têm
ar mais grave e cabelo curto, penteado para a frente. Na Saks eles são
tímidos porém maduros, ao passo que na Bergdorf's possuem
uma elegância sem idade e dão a impressão de serena
opulência. Os perfis dos manequins da Fifth Avenue foram modelados
a partir das mulheres mais encantadoras do mundo - mulheres como Suzy
Parker, que posou para a empresa Best & Co., e Brigitte Bardot,
que serviu de inspiração para alguns manequins da Saks.
A preocupação em fazer manequins quase humanos, dotando-os
de curvas, talvez seja responsável pelo estranho fascínio
que muitos nova-iorquinos têm por essas virgens sintéticas.
É por isso que alguns vitrinistas muitas vezes conversam com
manequins e lhes dão apelidos, e que os manequins nus nas vitrines
sempre atraem os homens, enojam as mulheres e foram proibidos na cidade
de Nova York. Isso explica por que alguns manequins são atacados
por tarados, e por que o esbelto manequim de uma loja de White Plains
foi encontrado no porão, pouco tempo atrás, com as roupas
rasgadas, a pintura manchada e o corpo apresentando marcas de uma tentativa
de estupro. Certa noite a polícia montou uma armadilha e pegou
o agressor - um homenzinho tímido: o porteiro.
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